Quando sabe-se menos.

A partir do momento em que a significação surge nas palavras de um texto, na exata precisão de ideia, nasce a sabedoria. A leitura, a elucidação e a compreensão provocam a emancipação da sabedoria alheia. Trata-se então da sabedoria íntima que se subtrai, uma concepção pessoal que acaba de ser preenchida por outro, uma possibilidade de vislumbre inédito que se anula, desaparece. Então, quando isso ocorre, estamos a saber menos do que o nosso egoísmo idealizou.



terça-feira, 25 de setembro de 2012

Pequeno gesto de amor

Desde muito jovem almejava o amor como propósito de vida. Afirmava querer ser a perfeita representação amorosa, oferecer a quem fosse e a quem quisesse, os maiores prazeres representados pela condição romântica.
Durante os anos de sua juventude se aplicou com devoção aos estudos. Tratou de ler e reler tudo sobre o nobre sentimento, dos tratados mais fantásticos aos ensaios difamatórios e de conteúdo suspeito. Entendeu a beleza das rimas, os ritmos dodecassílabos e as mais variadas maneiras e metáforas. Suspirava a cada intenção fracassada de jovens poetas fadados ao suicídio, ao sacrifício de um amor que não competia nem agradava.
Tratou de observar os apaixonados, seus gestos, afeições e disparates. Não queria, de maneira alguma, ter confundidos seus atos de amor com subterfúgios apaixonantes.
Durante as aulas práticas que lhe foram designadas, teve suores noturnos, um secar fulminante de lábios e óbvios tremores nas mãos. Apesar da naturalidade dos acontecimentos já havia lido sobre tais transtornos.
Especializou-se com louvor nas nuances de amar. Discursava sobre amores brutos, sujos, invejados, intactos, correspondidos, furtivos, fugitivos e desamparados. Desejava os passionais, dilacerantes e encarnados. Detestava equívocos.
Quando adulto se viu pronto. Sabia perfeitamente as diversas facetas do tão almejado e glorioso sentimento, e agora só lhe faltava o par.
E por essas convicções correu atrás. De peito aberto e palavras prontas.
Porém, por deleites que só o destino pode proporcionar, não fora feliz e não soube necessariamente o sentido de amar. E não fora por falta de tentativas, certamente não. Talvez fora o excesso de mira, zelo em agradar a quem não quer o amor como bem. Seu amor era teórico e, uma vez aprendida a lição, não havia maior interesse.
E, em ordem, fora traído, abandonado, esquecido, incompreendido e mal-amado.
Antes que lhe surgissem novas decepções, decidiu partir. Não pode dizer nem ao menos um "talvez eu volte" pois não havia quem assim o esperasse. Recolheu apenas alguns pertences, desejando esquecer os pormenores de seus sonhos, seus evidentes fracassos.
A partir dali seu desejo era outro. Queria a solidão como modo de vida. Sabia que o empenho a essa nova condição não lhe causaria maiores danos, não haveria surpresas nem desenganos.
Pegou o carro e saiu. Sem destino aparente ou planos. Teria apenas que abastecer, comprar água e poucos alimentos. Dali para frente os rumos seriam obra de um acaso pouco significativo. Sua existência seria comprovada em refeições esporádicas em restaurantes de beiras de estrada e o mínimo necessário de contato alheio. Não carregaria nem a falsa saudade de uma terra natal.
No entanto, o destino ainda lhe reservara uma pequena surpresa. Um desses casos que ocorrem somente aos que desistem, aos que aprendem a observar os outros por não querer ver a si próprios.
No posto de gasolina, enquanto aguardava sua vez na fila, fitou a garota no carro da frente. Ficou observando cada detalhe, como se tivesse certeza que algo ocorreria, como se estivesse a presenciar um momento único, jamais visto.
E de fato ele foi o único a notar. A garota do carro da frente, bela e deslumbrante à sua maneira. Em gestos que lentamente encostaram dois de seus dedos nos lábios, moldaram no ar um beijo e enviado em direção ao frentista.
Um instante de amor criado por natureza desconhecida, sem conhecimento. Que lhe soara natural como nada antes.
E naquele instante percebeu a origem de sua dor, dos preceitos de um falso amor. O motivo aparente de seus fracassos. Notou naquele gesto a verdadeira sensibilidade dos amantes, a espontaneidade de um beijo que só é ensinada àqueles que cabulavam a aula, que espalhavam o proibido como um novo sabor que surge à boca.
Aquela imagem fora sua maior lição de amor.
Não conseguiu ver a continuação da cena, pois as lágrimas que lhe saltaram aos olhos tornaram sua visão míope. Era o suficiente. Durante algumas horas, imóvel, chorou copiosamente.
Voltou para casa sem saber por qual caminho seguir.

* Com a intenção de presentear Luiz Schwarcz

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Árvore

Eu era
uma vez
a árvore
que ali estava.
A primeira
a estar ali.
A ser
antes de outros
seres
se instalarem.

E por belos
muitos anos
fincada
em raízes profundas
permaneci.
Sendo a razão
de frutos e sombra,
provas de amor
em rabiscos fortuitos,
a memória
viva
de diversas gerações.

E é exatamente
porque vi
aqueles todos
que por aqui
viveram
que sei
de meu inevitável
fim.
Tragédia estipulada
por um falso
progresso.

Por vezes
penso:
Onde estarão
as azáleas,
rosas,
violetas,
orquídeas
e camélias?
Em troca
de tais perfumes
apenas
algumas placas
indicando direções
a cada esquina.

Soube,
por outras fontes
escassas,
que ao caso
de minha partida
serão plantadas
outras tantas
mudas
de minha espécie.
Não quero
ser mártir
de uma geração
que não saberá
de seus antepassados,
que será vista
em redoma
e quase em extinção.
Não quero ser
a razão
de boas ações.
Quero
as boas ações
em razão de ser.

Partir e partir.
A razão dos homens
sobre a natureza.
Devo
ou devem.
Simplesmente.
Tudo
para um passagem
de um carro
que fatalmente será
substituído por
outro carro
e assim por diante.
Até que
percebam
que não há mais
espaço
para carros.
Que a solução
está
no ar puro
das espécies,
das árvores,
do ser.

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Sobre a impossibilidade de se apaixonar até o instante seguinte

Gostava
quase que exclusivamente
de se apaixonar.

Cruzava
constantemente
seu olhar
com os de outro
alguém.
Lentamente
passava as horas
em busca
explícita
de novos amores.

E esses surgiam.

Todos em vez
única,
todos em vez
singular.

Vinham
para saciar
a vontade,
a ansiedade,
a acalantar um coração
que fatalmente se partia
que escorria
feito seiva
entre as mãos,
em dedos que se encontravam
e naturalmente
se despediam.

Mesmo assim
vislumbrava.
Sentia
logo nos primeiros instantes
a necessidade
de estar
além de ser,
e dizia
para seu novo amor
as mais belas fantasias
de um futuro
em essência.

Roubava um beijo
e quando este
lhe parecia morno
desistia.
Resistia.

Gostava
quase que exclusivamente
de se apaixonar,
o amor era outra questão.

Pequena

De tudo que conheço
você é meu começo,
meu desleixo,
meu caso e descaso,
meu por fim.

Minha dádiva onírica,
anjo dominical
de verdes olhos
que repousa
silenciosa
em meu sono.

Minha percepção de
tempo
espaço
conteúdo.

Meu significado
significando.

E até mesmo
quando
falo
de um amor
que não nosso.
Do fervor
de outros corpos,
cheiros
de meus anseios
descomedidos,
tenho em mim
você.
Juro que sim.

Quando falo
de alheios
amores brutos,
diferenciados
pela intensidade da dor,
esse amor
não espero,
não reconheço.
Do amor
só se conhece
quem possui.

Diante do mundo
que me é sagrado,
sou o que me faz
ser e pensar.
Minha única concepção
de amor
de amar.

Deve ser o amor

Deve ser o amor
que transforma o estado de espírito
em modo de vida.

Deve ser o amor
que faz sua distância insuportável,
incoerente e lamentável.

Deve ser o amor
que acelera o peito, saliva e boca
e implora um beijo.

Deve ser o amor
aquele que impulsiona
e devora.

Deve ser o amor
que releva as manias presentes
e os vícios atraentes.

Deve ser o amor
uma força maior, conjunção dos corpos,
desenlace de um encaixe.

Deve ser o amor
que torna suas promessas, ainda imaturas,
em um futuro plausível.

Deve ser o amor
que pinta seus olhos na mais bela
das paisagens.

Deve ser o amor
que deixa esse perfume e se deixa
levar.

Deve ser o amor
que faz de meu desejo um  presente
que sempre há de chegar.

Acredite amor
deve ser o amor.
Pois se não for,
deve ser você.

domingo, 29 de julho de 2012

Sobre a impossibilidade de dançar a dois

No meio do salão
um som qualquer
um convite
ao pé do ouvido
pra dançar
ocupar um mundo íntimo
percorrer um tempo estranho
galantear
devagar
divagar.

Em meio a tudo
somos nós
pra lá
pra cá.
Não consigo
acompanhar.

Meus olhos
seguem
seus passos
que seguem
a
desmistificar.

Embarcação

Em mil pedaços
me encontrou
e sorriu.
Repousou
cada detalhe meu
na palma de sua mão
e me levou
consigo.

Cuidou
de examinar
a cada instante
o melhor
para mim.
Foi paciente
e elogioso.
Me conduziu
à perfeição
que ambos
esperávamos.

Por aqueles dias
foi
um bom tempo.

Com o passar
dos outros
meus instintos afloraram,
dentro de mim
nasceu a vontade
característica
de minha função.
Devia partir.
Embarcar
em minha condição.
Mesmo que
minimamente
desejava o mar.
Minha razão de ser
superou
a de estar.

Nunca pude.
E por fim
permaneci.
Naquilo
que me envolvia
e distanciava.

Eu era a sua escolha
exclusiva.

Digna somente
de seus toques,
dedos ásperos
de outros amores
de antigos cuidados.
Aos estranhos,
admiradores curiosos,
eu era
a beleza de fato,
inalcançável.

Mesmo que
intimamente
desejava amar.
E de longe
meus anseios
amuavam.
Sabia
ter de ficar.