Quando sabe-se menos.

A partir do momento em que a significação surge nas palavras de um texto, na exata precisão de ideia, nasce a sabedoria. A leitura, a elucidação e a compreensão provocam a emancipação da sabedoria alheia. Trata-se então da sabedoria íntima que se subtrai, uma concepção pessoal que acaba de ser preenchida por outro, uma possibilidade de vislumbre inédito que se anula, desaparece. Então, quando isso ocorre, estamos a saber menos do que o nosso egoísmo idealizou.



domingo, 26 de dezembro de 2010

Sobre Federico

Preciso de uma voz
que me fale por baixo
coisas que o mundo
não deve obedecer.
Preciso de ouvidos
que me escutem
no improvável
e na calada fantasia.
Preciso de olhos, outros olhos,
que os meus já se bastaram
no sereno cotidiano
infeliz.
Preciso de braços
que me alcancem
num abraço
ainda mais perto.
Preciso de um sorriso
espalhado em outros sorrisos
e que migram no espaço
interno de minha quase solidão.
Preciso de um velho coração
daqueles que apanharam
para o resto de uma vida
e não mais se abalam.
Preciso de novas intenções
pois as que me restaram
se tornaram caladas
e por fim não mais me servem.
Preciso de novas formas
de amor e solidão
que me tomem os sentidos
e esqueçam da razão.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Promessa

Serei o que quer que eu seja.
Serei o umidecer de seus lábios, o brilho de seus olhos e o soar em seus ouvidos.
Serei a espera em seu desespero e a chegada resumida em saudade.
Serei a origem de seu abraço e a necessidade de uma ausência explícita.
Serei a solução de seus soluços e o leve sopro capaz de mover inportunos cílios.
Serei fruto de sua imaginação e objeto de manipulação.
Serei sua figura de linguagem, sua concepção de malandragem, seu universo digno de passagem, sua percepção de nua paisagem. Serei o tudo além.
Serei o tudo em nós dois, sem tempos passados e futuros.
Serei seu ponto-cruz num infinito de possibilidades.
Serei seu epicentro, sua doce morada de anseios e frustrações.
Serei seu silêncio pausado que machuca e cura na necessidade alheia.
Serei sua manhã alnejada em semblante noturno.
Serei sua vontade de maneira recíproca.
Serei eterno ao seu lado e conveniente quando preciso for.
Só não serei sua boca após a outra.
Assim seja.

domingo, 19 de dezembro de 2010

História de um quase meio-dia

Aos primeiros olhos absorvidos pelo fim da manhã, me observa belo, impávido e intocável.
De perto, sente calada meus primeiros perfumes. Aromas que exalam, que satisfazem sua vontade escancarada, percebida na umidade recente de seus lábios.
Ao redor os outros passam, rodeiam, circulam e não percebem o doce saboroso imaginário bem-estar. No cenario gastronômico configurado, a vontade segue seu curso sem quaisquer armadilhas.
Enfim se aproxima, se entrega à deleitável rotina de me desejar, de me ter intimamente de maneira presente e sustentável. Suspira em minha fronte e por um instante teme suas próprias escolhas. Quer um todo, mas teme o pecado da gula.
Pela naturalidade adquirida decide-se.
Percebe a condição de minha inevitável tarefa. Com brilhos de um olhar pecaminoso me corta ao meio, busca em meu peito o sabor almejado. Meu espaço, agora vazio, escancara a ausência nobre de um sentimento, sou manipulção de saciedade e só.
Num gesto sedutor me carrega próximo ao seu ventre, segue tranquilamente com a certeza de suas escolhas. Escolhe, entre tantos lugares, um destino particular para o nosso encontro. Se acomoda silenciosamente, pensa no prazer irrefutável daquele momento e me olha passivamente.
Vagarosamente me leva à sua boca recheada de vontades e expectativas.
Logo após o primeiro corte nossa natureza se transfigura. As marcas de dente e a condição da mastigação voraz e implacável não me causam dor, elas apenas exaltam o possível de minhas qualidades.
E assim me torno seu alimento, seu laborioso almoço santificado em prazer, gosto e digestão.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Conclusões regionais

Na véspera do nascimento do terceiro filho, a certeza de uma homenagem anunciada.
O primeiro foi André, seguido de Bernardo. No dia que viria, a completa manutenção de uma promessa, a denominação de Caetano para completar um ciclo de aspectos familiares, econômicos e sociais.
Porém, no dia seguinte, qual a surpresa de pais e irmãos. Na manhã fria de Agosto, graças a um engano médico, quem nascia era Diadema.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

A vida de uma alface violada

Ao despertar para uma vida sem propósitos, ela se vê entre outras sementes, percebe que entre todas que descansam é a mais bela. Ela, pequena e arredondada, tal como uma lágrima natural perdida de Deus.
Após um tempo de asfixiada espera, se vê jogada numa terra úmida e mal cheirosa, uma cama de perfumes íntimos recheada de nutrientes vigorosos ao plantio. Ali adormece e se alimenta.
Por todo seu desenvolvimento se dá por satisfeita. Sente em suas veias o carinho de seu glorioso mestre. A sensação de bem estar se prolonga por toda a plantação. Toda noite, em coro com suas semelhantes, agradece em oração aos nobres plantadores. Na última toada do dia todos repetem em salvação:
"Regai por nós, agricultores!"
Com o passar dos meses, na fertilidade anunciada, se vê forte e graciosa. Tratada como adulta, aguarda o momento de ser colhida por quem sempre lhe quis bem.
Na véspera de ser arrancada com suas raízes, de ver sua morada transformada em vazio, sonha com a mão que lhe deve tomar por inteira. Quer servir de alimento a quem sempre lhe alimentou. Imagina-se em possíveis pratos, em prováveis maneiras de ser saborosa ao paladar de seu amo.
Na manhã esperada a ansiedade lhe toma por inteira. Aos primeiros raios de sol já está nas mãos de seu amado. Guarda com carinho tal passagem. Se instala junto a outras espécies, outras verduras de diferentes formas e perfumes. Se acomoda no canto de uma caixa de madeira na certeza de seu propósito amanhecido.
Quando o sol, em seu ápice, indica a pausa merecida dos pobres humanos, ela e todas as outras partem. Se dirigem, num imenso caminhão, para a grande cidade. Sente uma dor pulsante, uma mistura de abandono e solidão. Não entende ser desprezada por quem sempre lhe quis bem.
Chega a cidade em meio a gritaria e poluição. Se vê oferecida e rejeitada na feira livre municipal. Acaba trocada por maçãs argentinas e segue seu novo rumo. Na determinada troca imagina ser levada por alguém de excelente prumo e gosto. Imagina um futuro apropriado à sua condição.
Fatalmente isto não ocorre. Assim que chega a uma quitanda, seu novo lar, é tratada com desfeita. Logo os funcionários lhe arruman defeitos de forma e coloração, eles esquecem de salientar o calor responsável por tais deformações. Devido aos ataques verbais é posta em promoção.
Novamente se vê sem opção. Relembra sua trajetória passada de mão em mão. Rejeitada pelos muitos que a trataram com negação. Numa bacia de plástico suja e desbotada permanece abandonada por todas as horas de uma tarde sem fim.
Assim fica até o fim do expediente.
Antes de se fechar as portas do inóspito estabelecimento é oferecida à primeira pessoa que parece ter fome. Uma dona de casa simples e carinhosa, uma mulher que lhe trata carinhosamente. Durante todo o percurso até sua casa, a mulher conversa sobre o saboroso jantar planejado.
Com muito carinho é lavada e escorrida. Na mesa posta é opção saudável e quase certa. Observa a voracidade de um jantar sem diálogos e mastigação. Mais uma vez é esquecida junto aos restos. Ela que na juventude fora a mais bela das sementes escolhidas e agora é figura rejeitada de um jantor insosso.
Num solitário fim se vê afogada numa solução de vinagre, sal e azeite.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Flores de Inverno

Na estação chegada à janela, as flores retornam ao lar, retomam a figura bela de ser ser ao ar livre. No jardim que se destaca ao térreo do andar, novas vidas desabrocham, respiram num ar fundo, profundo, pousado e pausado.
Natural beleza colada às faces rubras, brancas e rasas.
Antes de o sol prevalecer, os pássaros já comentam os doces sentidos em forma de canção. Nos horários adiantados de outra estação, eles começam a labuta de evocar antes do acontecer.
Nas imagens que se formam, fotografadas nos piscares de olhar, a Primavera se reabilita num instante, se revela como feito anual e impecável. Passado as estações de queda, branquidão e exagero, a bela dama se renova, retoma seu lugar de musa floral.
Como continuam belas as flores de meu jardim!
Engano meu.
As flores não continuam. As flores não prevalecem (a não ser na memória dos livros e poemas). As flores vivem seu excepicionam e falecem.
Perpetuadas são somente as flores de Inverno, aquelas que partiram contigo e partiram. Flores carregadas de recados e saudade.
Flores feitas, partidas, perpétuas e magoadas.
São as flores que te acompanharam em lágrimas e me deixaram só nesta manhã primaveril.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Fatos

Por anos que não te vejo mais assim, tão logo em minha frente. Pode parecer estranho, apesar de tantos anos, perceber que não te olho da maneira como antes. Maldito o tempo que permaneceu cruel tanto para mim como para ti.
Miro meu olhar ao teu, olho assim por modos e sem jeito. São tuas pálpebras já cansadas de olhar um olhar que não permanece, mesmo.
Teu sorriso, sempre afável, é o único a me permitir, talvez. Ele sim continua...
Lembra-te das vezes que partimos em busca de verdades meticulosamente verdadeiras?
Pois bem, não era eu. Pois bem, nunca nos encontramos.
Depois de anos desmedidos sem tua presença, me esperavas em teu presente. Vangloriavas o mundo sob a fonte de saudades inexplicáveis e de cunho vernáculo suspeito. Soubestes viver assim enquanto eu, por mim, vivi bem sem ti.
Decidistes ficar?
Não responda, de fato não importa. Qualquer tentativa tua soaria como um presságio daquela vida que passou, rapidamente. Um sentido que deixastes ao me deixar para trás.
Como podes querer voltar e ao meu lado envelhever?
Tinha em meu querer a fonte de tua juventude, pura e divinamente intocável. Distante e aprazível somente aos meus olhos. Depois de perdoar teu caso, teu acaso já não me importava. Na época, já sinalizava para tais circunstâncias.
Tuas novas atitudes, deixamos pra depois. Não quero mais perder o tempo, valioso tempo, um tempo que se molda a partir de nossas atitudes e desenganos.
Devo ir. As obrigações me chamam e condenam. Quero apenas escovar os dentes e depois seguir.
É provável que mais tarde eu não te veja. É provável que nem amanhã.
É provável que eu não queira. Mais.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

O menino de papel

No sertão de um país sem igual, Canson vivia sossegadamente com sua família, amigos e conhecidos mais. Moravam num lugar onde todos os cidadãos eram de papel, e por isso o nome: Vila dos Papéis. Estrategicamente localizado no interior da seca, longe das terríveis chuvas que assolavam o país.
[sertão, céu azul]
Sobre as chuvas e tempestades, Canson sabia apenas do que vinha de fora. Sabia dos horrores de São Paulo, terra da garoa e dos perigos do Rio de Janeiro, da Baía de Guanabara.
[cidade, céu cinza (nublado)]
Na Vila dos Papéis o tempo seguia em paz. Num absoluto céu azul, todos, sem exceção, viviam em harmonia e felicidade. Os mais velhos pregavam a união com respeito recíproco de seus semelhantes. Os mais novos gostavam de andar sempre juntos.
[bonequinhos à moda Criança Esperança, mocinhos e velinhos]
Por vezes, quando tinham de sair para uma cidade vizinha, por algum motivo ou outro, Dona Cartolina, mãe de Canson, repetia sempre os mesmos atos. Beijava o retrato de seu falecido marido, que serviu a nação como A4 na Guerra de Canudos, e ia estender rapidamente seus vestidos mais bonitos no varal.
[um retrato na cabeceira e um vestido no cabide]
Respeitando uma lenda vestuária antiga, do tempo do Império do Sol, o estender dos vestidos no varal era um pedido aos céus e à falta de chuva. Um eterno desejar de tempo seco capaz de preservar seus lindos e preciosos vestidos.
Toda vez que voltava pra casa, D. Cartolina via nos vestidos secos a realização de suas vontades.
[um grande sol e um varal que percorre o quintal, o vestido em destaque]
Na vila, na seca, na morada nada de chuvas ou trovoadas. Mas para Canson nem tudo era calmaria e tranquilidade. Pelas últimas notícias parecia ter um futuro bem nublado. Sentiu, no peito, uma tristeza amarga e cinza.
[Canson, no peito um coração cinza]
Sua amargura era pela partida de sua amada, de sua bela namorada, sua dama perfumada. Seu amor que então partia. Por vontade da família dela, Canson e Crepon iriam se separar.
[a namorada de Canson, Crepon]
O pai dela, autoritário e mandão, queria que Crepon fosse estudar nas grandes cidades. Queria que ela fosse morar com um tio plastificado que sempre mantia contacto.
Para ele, Crepon deveria ser mulher de Letras. No fundo, no fundo, ele fazia o melhor em seu papel de pai.
[letras com diferentes formas, sobrepostas, com diferentes cores e papéis]
Quanto mais perto da partida de Crepon, mais notícias chegavam, vinham feito tatuagens nos corpos das belas cartas. As mais exibidas e viajadas possuíam até selos marcantes de suas passagens pelo mundo.
[inúmeras cartas de diversos tipos e tamanhos, com selos de lugares diferentes, preferencialmente lugares secos]
No dia da partida, Canson e Crepon se emocionaram muito. No abraço apertado que deram, deixaram escorrer solitárias lágrimas que se cravaram no ombro direito de cada um.
[imagem deles se abraçando, no ombro dela (único visível) a marca da lágrima {metade de um coração}]
Na noite que seguiu o dia, Canson não conseguia dormir. Sentiu uma imensa vontade de chorar, mas não podia. Queria, mas tinha medo de se desmanchar em suas próprias lágrimas. Passou as horas pensando na felicidade simples que parecia distante.
[menino na cama, janela aberta, estrelas na noite]
Nem bem amanheceu, ele tomou uma decisão. Saiu à rua com o único objetivo de trazer sua amada de volta. Partiu com pressa, sem dar explicações ou dizer adeus.
[quarto vazio, as coisas do menino deixadas para trás]
Com o sumiço do filho, Dona cartolina se desesperou. Com o pequeno post-it bebê no colo, foi logo avisar as autoridades.
Guarda Napo imediatamente se prontificou, para ajudar a família saiu em busca de Canson.
[D. Cartolina com post-it no colo e Guarda Napo ao lado]
Depois de muito caminhar, o guarda Napo finalmente encontrou o jovem fujão. Numa estrada deserta, viu Canson abraçada com seu único e verdadeiro amor.
Mesmo de longe conseguia ver sorrisos recíprocos de um amor sem igual.
[um caminho e o casal apaixonado]
No abraço dos dois, um sinal de que nunca deveriam ter sido separados. Novas lágrimas, desta vez de felicidade, se perderam e se desprenderam dos enamorados olhos. Escorreram devagar, uma lágrima de cada, percorrendo um caminho traçado anteriormente.
[metade do “coração” se completa, surge a tatuagem de coração no ombro de Canson e Crepon]
Nos corpos uma marca, enfim, completa. Nas lágrimas que juntas desenharam um coração, as emoções da partida e da chegada. No encontro reencontrado, a certeza de uma estrada rumo à felicidade.
[a figura do casal no caminho, o sol abençoando o casal, efeito angelical]

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Sentir não mais

Agora, ao despertar dos galos, ele não mais acorda despertando em si um bom dia. Não faz questão de preparar o café, equilibrando sentidos e sabores. Não sai pela manhã respirando novas brisas de conforto e naturalidade.
Não passeia pelas passagens pouco urbanizadas, pelo que chamamos de rua ao invés de caminho. Não olha nos olhos dos outros para não ver refletida sua própria imagem artificial. Não mais faz questão do bom senso ou juízo, das injúrias imperfeitas blasfemadas por outrém. Não mais se cansa nem retoma imperfeitas declarações.
Não pensa no correto a se seguir, não se lembra de como ou em que sentido seguir. Não mais se sente humilhado pelas promessas fáceis e piedosas. Não se estica em longos olhos para saber das novidades.
Não sente o perfume roubado de uma rosa nem o leve vislumbre de um dia ensolarado.
Não percebe a permanência de um beijo nem a falta que faz um abraço. Não deseja voltar para casa nem continuar na rua. Não consegue medir a capacidade de se estar.
Está assim sentindo desde o dia em que você partiu.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Era uma palavra

Era uma vez uma palavra, sob a própria alcunha era [palavra].
Na branca imagem do papel era soberana e impávida.
Na concepção de [única palavra] deixava de ser só.
Tinha, agora, a companhia de única, como se para ser única tivesse de ter mais de uma companhia [única palavra companhia].
Como não era mais única a palavra deixou de ser forma, se viu em duas descrições sem a forma de palavra, era agora conjunto de uma frase, com adornos, referente à palavra [palavra: única companhia].
A multiplicação de formas se fez como uma surgida explicação.
[tenho apenas a palavra como companhia, mesmo quando me despeço de todos meus vícios sonoros, tenho na significação dos símbolos a afirmação da palavra. Aquela que surge para rotular o inrotulável]
Logo se perderam de vista e se ploriferaram, uma palavra gerava outra, que logo a abandonava para gerar em si uma nova palavra. Visto da folha antiga, que fora quase branca, as diferentes palavras se ocuparam:[aocupaçãodaspalavrasfoirepentinaedesordenada.seencaixaramsemperguntarsealicabiam,seamontoaramdistantesdeseussentidosaboslutos.aúnicasensaçãovivaeradequedeixavadeserreal.começaavivercomoúnicacompanhiadesuasfragmentações,sesentircomonovaconcepçãodeforma]
Percebendo a falta de coerência, algumas palavras se rebelaram, formando um sentido que ali se explicava:
[a ação da palavra foi ordenada. sem perguntar iam,
distante dos lutos. a ação de ser real
viver como única de suas ações, ir como nova forma]
Na resolução descrita, novas palavras se formaram. Se encantaram, se modificaram. Se especializaram em diversas formações.
Palavra:
Vocábulo provido de significação.
Faculdade natural de falar.
Oração, discurso; pregação, doutrina.
Arte da palavra, a retórica, a literatura.
Dom da palavra, a eloquência.
De palavra, que cumpre o que promete: pessoa de palavra.
Só ter uma palavra, ater-se ao compromisso.
Medir (ou pesar) as palavras, tomar cuidado no que diz.
Dar palavra a, permitir (o presidente de uma assembleia) que alguém fale.
Pedir a palavra, solicitar permissão para falar, ou o direito de falar.
Direito de palavra, direito reconhecido a qualquer membro de corpo deliberativo de pedir e obter a palavra, nas condições previstas pelo regimento interno.
Buscadas as formas de sua própria concepção, elas se cansaram.
Começaram a se recolher, a partir, a se desinteressar por suas próprias descobertas. Logo a folha, onde as palavras estavam dispostas, voltava a ser branca.
A última a se despedir foi o começo de tudo, a sensação de ser [palavra].

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Autorretrato

Há mais de 60 dias que não lhe digo bom dia ou boa noite, confesso que isto faz falta aos meus dias. Passo os dias distante, esperendo sua benção para uma vida surgida, em vão. Para os que tentam meu silêncio mudar peço desculpas, mas o improvável merece a condição de impossível nos caminhos que aparecem.
Em minha conquistas recentes respeito a euforia alheia. Me calo ao perceber que não há para quem dedicar meus feitos, os efeitos destacam apenas minha solidão estampada. São das aprovações que me envergonho. São das provações que tento me esquivar.
Sem a necessidade de palavras brandas, busquei, por toda a vida, sua aprovação imediatada. Remediava meus atos na esperança que percebesse minhas benfeitorias, notasse meus reparos, tirasse pra si um bom exemplo. Tarde demais ou, para nós, nunca.
Minhas atitudes servem agora pra moldar meu autorretrato, sem suas vias complexas de comparação que tanto alimentaram meus sonhos e conquistas. Vago só na condição de existir, não serei o que esperam por não ter de quem esperar.
Mereço o destino retorcido por me achar, antigamente, capaz de ser sozinho, ser íntimo de meus atos, ser coerente aos meus pensamentos. Me calo por entender que o hoje é ainda, que o amanhã pode ser apenas o exemplo de um tempo que nunca chega. Mereço o castigo do tempo para não me perpetuar em fixos ideiais, mereço o fim que não chega até que eu me acostume ao sentido de tudo isso.
Viverei o que será de meus dias sem a competência destinada aos sanguíneos, aos familiares que partem sem dizer adeus, bom dia, boa noite.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Minhas borboletas íntimas

Ainda deve ser de manhã quando acordo, pelo silêncio que se esqueceu na memória ouço o trabalho pueril da cidade. Ainda tenho sono.
Na sensação de começo que se inicia, perco a motivação de seguir, de continuar sugerindo a prova de que não sou capaz. Por dizer, estou cansado.
Fecho os olhos sentindo a verticalização de meu horizonte, a incapacidade aumentada no plano do infinito. Rapidamente as palavras percebidas em minha mente começam a voar aos céus de um horizonte prático. Começo a perdê-las de vista e ploriferá-las. Numa concepção calada, elas mudam e praticam cores, incorretamente variam para não serem identificadas. Somem enquanto novas surgem. Palavras em cores tanto.
Respiro profundo requerindo aconchego. Sugiro um redor cadenciado, referência de meu tempo, na espera de eu ser um simbolista. Não sou atendido.
Resolvo por mim acalmá-las, ser o produtor de seus desejos íntimos, carregar em meu pensamento a decorrência de serem. Elas simplesmente partem, partidas em metade até serem quase esgotadas. Sinto o remorso em mim, elas somem para um possível sempre e a culpa se ocupa de mim.
Abro os olhos no som amargo dos corredores. Respiro o sopro de um lugar fechado. Não há palavras nem menção de atraso. Aparentemente tudo corre bem.
Volto a fechar os olhos numa esperança que me doma, me persegue, me arranca de meu lugar infeliz. Tenho os meus pés como soltos e começo a flutuar, minhas rotas de significação se sobrepõem às de orientação. Sou padrão de minha imaginação capaz.
Chego perto das palavras que foram minhas, que partiram e me desassossegaram, que agora voltam a ser palavras do absoluto, voltam a ser reunidas. As cores tendem a construir uma paisagem, a vontade de ser parte faz de todos um retrato belo e mágico. Leve sensação de reconstituir a felicidade.
Vou em busca delas, quero tomá-las por necessidade, carregar nos meus planos o que entendi de concreto e completo. Quero convidá-las ao conforto do papel, ao destino coerente das belas imagens percebidas em outro plano.
Não consigo. As palavras dobram e redobram ao redor de mim, estico o táctil e não as alcanço. São meus possíveis reflexos, minhas borboletas íntimas. São elas que se sugerem, não podem, por natureza dos efeitos, serem sugeridas.
De volta ao quarto num presente que não deve ser mais de manhã, permaneço em profundo silêncio, indiferente aos diagnósticos especializados.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Criação

No primeiro dia
fez-me os olhos,
apresentou
a beleza silenciosa
de uma paisagem
intacta.
Consolidou-me
ao fascínio
de vivas cores,
de formas e percepção.
Fez-me
espectador
do colorido semblante
da obra divina.

No segundo dia
fez-me os ouvidos,
realizou
sinfonias naturais
para puro
deleite
de meu novo atributo.
Mostrou-me
as conversas dos animais,
seus diálogos atenuantes
e singelos.
Musicou-me
na lamentação breve
do correr dos rios.
Apresentou-me
prazeres ruidosos
e o inevitável
silêncio.

No terceiro dia
fez-me o nariz
e a necessária sensação
de respirar.
Presenteou-me
com flores
tão felizes e doces
que tive a obrigação majestosa
de nomeá-las.
Espalhou por entre
detalhes
uma essência selvagem,
mistura peculiar
de todos os perfumes exibicionistas.

No quarto dia
fez-me a boca
recheada de surpreendentes
sabores.
Ofereceu-me
saliva
e frutos diversos,
tratou-me com graça
na recusa de sabores
amargos.
Na particularidade
de certos gostos,
prolongou-se
em meus lábios,
um doce sentir de paixão
inegável e inesgotável.
Beijou-me
até a certeza de
um novo dia.

No quinto dia
fez-me os braços,
mãos,
vergonhas e pernas.
Mostrou-me
a capacidade do próximo
sem o próximo,
ensinou-me a tocar,
até então,
o inexistente.
Transformou
a figura
em mim.
Apesar
do infinito palpável
que se alinhava lá fora,
preferi o gozo
da autodescoberta.

No sexto dia
fez-me em sentimento:
coração.
Desejou-me
calores internos
e suores noturnos.
Apresentou-me,
um a um,
futuros prazeres
e consignadas culpas.
Fez-me
uma solidão carregada
de sentimentalismo
e exagero.
Definiu-me saudade,
mesmo
sem a presença do outro.

No sétimo dia
fez-me
a alma
e nada disse.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

As Carpideiras

Nos anos de minha vida fui pouco e mal conhecido. Dos infortunados pela minha companhia todos partiram, poucos querendo ficar. Nos caminmhos que se formaram sinônimos, todos tinham a certeza de ir, partir e assim sobrei-me numa solidão intacta.
No tempo que não passava tanto, meu comportamento se consolidou numa rudeza tão desprezível que não despertava o interesse nem de inimigos. Foi então que soube que o ódio possui uma dose necessária de simpatia.
Sozinho, sem o mínimo de consideração alheia, fiz fortuna e questão de perdê-la. Num fim sem meios não se há de ter herança, herdeiros ou hereditariedade. Deixei em planos um caixão e um pedaço de terra. Minha tragetória sugeria o silêncio de meu epitáfio, na presença vazia do inevitável.
Quando do desfecho, faltaram flores, velas, lágrimas e saudade. Talvez seja esse o intuíto de um desfecho, ser encerramento e não exaltação. A chegada de um herói que não se acusa, que se cala e que aguarda.
Um só de mim que nunca deixou de ser pó.
Porém, no caminho que se seguia, ouvi de longe a defesa de meus anos, um pedido melancólico que clamava pela abertura das divinas passagens. Eram as benditas carpideiras salientando a tristeza dos passos, passados.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Do amor e suas tragédias

Discreto, era viúvo. Camilo, enquanto semblante, exalava tristeza.
Na cidade todos sabiam e entendiam seus modos, e por vezes determinavam seu fim. Sabiam do amor e suas tragédias.
Quando sua filha ainda era pequena, cultivou um costume que se perdurou pelos anos. No meio de qualquer tarde, no marasmo de algumas horas, colocava sua filha para dormir. Contava histórias benéficas sobre o sono vespertino e dizia, que até mesmo quando se tinha pesadelos, esses serviam para expantar os males e medos enquanto o corpo descansava.
Enquanto sua filha dormia, Camilo chorava honrosamente à imagem de Nossa Senhora, chorava a saudade de sua esposa, a ausência como certa, durante sua oração voltava a vê-la.
Os anos se passaram e os hábitos de sua filha mudaram, os dele não. Ela sabia que não deveria o incomodar nas horas da tarde, nos momentos de sonho e oração. Respeitava a vocação do pai, respeitava a razão de um infinito amor, via na solidão a fidelidade almejada.
Quando Camilo faleceu, numa viagem simbolizada nos anos anteriores, sua filha preferiu a evocação distorcida dos sonhos. Dormiu disfarçadamente diferente. Seguiu dias orando e sonhando uma vida distante e peculiar.
Entendia do amor e suas tragédias.

domingo, 22 de agosto de 2010

Brisa

Na tarde de domingo, pela janela esquecidamente aberta, uma brisa se sente segura para adentrar por entre os espaços vãos da janela. Repousa sobre as flores de plástico, no vaso, na mesa de jantar, silenciosamente num estar.
Na decorrência de uma brisa, outras brisas se juntam, e juntas já não são mais brisas. O jeitoso pousar da antepassada brisa não permanece. Papéis soltos na mesa e de outros pápeis, que quando juntos não eram soltos, circulam num cenário rodopiante, numa festa íntima infantil repleta de euforia. As brisas renovam a paisagem de um dia e o modo de conduta é o vento.
Na passagem, o vaso permanece impávido ao movimento dos ares. No centro (que deveria ser natural) as flores não se refrescam na brincadeira vespertina. Pelo infortúnio de serem de plástico, não se comportam de forma natural, apenas observam, mortas.
A diversão de minutos incontáveis faz os papéis percorrerem a amplitude da mesa, o vazio da gravidade e do chão. As flores observam a progressão natural que não possuem. Quando as folhas, sossegadas na exatidão do chão, se fingem de mortas, não se sabe se a brisa continua a tocar.
O ambiente se modificara em feito.
A bela imagem, percorrida pela brincadeira dos naturais, decrita pela passagem da tarde, não fora vista por ele. À noite, ao chegar em casa, o que se viu foi a bagunça.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Desculpas.

Perdoe meu atraso na correspondência, mas me faltava e ainda falha a fala para tratar sobre o assunto. Perdoe minhas palavras que podem parecer sobrecarregadas, mas não sinto mais o peso do ar em meus dedos e lábios, me falta um fôlego quando cada vez mais, mergulhado num profundo silêncio, volto à superfície. Acordo rodeado por palavras de apoio e firmamento que soam semelhantes, pragmatizadas em vozes conhecidas. Um distúrbio que ainda não sei se meu ou alheio.
Devo dizer que ainda não senti sua total partida, dizem que isso passa ou não passa, dizem. Nem isso tenho o prazer de escutar com atenção. Logo me desvio para um lugar distante, um lugar não alcançável em minha memória. Tenho receio de sentir sua falta e não me lembrar de momentos mais frágeis de nossa relação, esquecer do que foi parte de meu aprendizado para poder justificar a loucura de minhas análises.
Sei que dirá que tenho um anjo só para mim, me olhando, orando e cuidando de mim, como me disse na vez maternal e anterior. Para ser sincero, estou farto de anjos. Minha vida se tornou guardada apenas pelos que foram, não resta à mim ninguém aqui. Serei apenas o exemplo do máximo que eu poderia ser, ninguém esperará de mim mais do que eu posso oferecer, nem menos do que posso retribuir.. Tudo será razão de meu destino, minhas ações serão julgadas diretamente sobre as regras familiares não plausíveis mudança. Serão frequentes as advertências além referenciadas.
Assim devo ir. Tenho de traçar algumas medidas de meu futuro, antes que os céus se revoltem novamente e mirem em meu lugar. Não haverá outro quem.
Sinto que esteja distante e também sinto sua falta. As escolhas geram esses tipos de desprazeres.
Até breve.

domingo, 1 de agosto de 2010

Ela não quer as suas qualidades

Pode tentar, o prazer é todo seu. Saiba, apenas, que ela não quer as suas qualidades. Nem agora nem após. Nunca.
As noites de hoje não tem importância, talvez. Um coração traído remete o perdão, mas nunca o adquire. Saberá no amanhã, se assim continuar.
Nas manhãs que virão, ela não reservará uns minutos para lhe observar, ela não saberá seu prato favorito nem a música de sua autoria. Ela só quer o desejo de ser desejada.
Ela não caíra em distinto pranto quando der a hora de partir, nem nunca quererá saber os motivos de seus atrasos. Ela só quererá o saber de um próprio querer.
Quando um dos dois envelhecer, pior será o assim. As palavras não convergeterão em conclusões, as respostas vagarão longe. Fará parte de um vazio, a que chamará de instinto de culpa.
Seus serviços não serão dignos de um olhar, ela não saberá qual o tamanho de suas obras. As realizaçõe serão só suas. (parabéns)
Ela não saberá de cor os caminhos de seu corpo, ainda ardente pela manhã que teima dia-a-dia.Ela não soprará uma brisa leve em seu ouvido em descanso para que acorde sem malícia e marejado.
Não saberá dizer bom dia ou boa noite sem parecer rotineira, será um eterno querer desprovido de boa vontade, assim saberá e assim não irá mais querer.
Ela não dirá, da boca pra fora, motes amorosos ou odes odiosas, guardará para o velório os sentimentos corrompidos e desprovidos de poesia. Lá, você não perceberá.
Não irá lhe dizer o certo e lhe esconder o errado. Não cuidará de você, mesmo quando não estiver doente. Ela será um detalhe, fatalmente esquecido. Acredite.
Somente sendo assim, saberá ser amado.

terça-feira, 27 de julho de 2010

Nesses anos de relacionamento

Por toda a nossa vida defendi, além de tudo, minha separação de mim. Desejei, em parcelas, a perpetuação de minha dúvida sobre a sensação de um sentimento conduzido. Te amei até a certeza de ter de partir.
Diversas vezes, planejei uma possível fuga, mas não tinha forças para te abandonar na liberdade.
Quis ser surda, quando teimava em ser seu colo desprovido de sensualidade, quando era a representação do que te havia prometido.
Quando contavas sobre uma antiga paixão, justificável na semana anterior, e eu fingia ser absolutamente crente, me entristecia pro mundo. Quando falavas sobre digníssimos olhos que nunca eram os meus, sobre a beleza das Primaveras, quando atribuías qualidades e diferentes peculiaridades honrosas a outros lábios, quando fazias de um sonho uma estrela, me sentia só. Por sempre, assim gastávamos as horas.
Nas noites em que resolvias visitar a noite, me sentia talhada por dentro, corrompida e pelos anos fui me tornando vazia, servindo de modelo para sua determinada felicidade.
Quando amanhecia, juravas querer voltar e eu ser impotente. Acreditava que não mais te buscaria, mas a tristeza carregada em seus olhos me saudava profundamente. Então, eu jurava aceitar as melhorias. Te trazia para casa e ao teu mundo. Foram muitos os finais de semana regrados a promessa e aguardente.
Na concepção de matrimônio, fui tua companhia nos dias úteis, nos dias de ressaca e de fatalidades comemorativas. Fomos casados na imagem de uma fotografia, no ritual da crença solitária e festeira. Dito isto, te isento de toda possível culpa, sendo eu a culpada por te acostumar assim.
Agora, ao te observar assim, percebo mesmo que devo ir, não quero mais suportar o fundo belo de sua alma infantil, quero esquecer tua triste figura, desolada, pedante de carinho, que transfigura vestígios de cansaço e solidão.
Peço que não abandones suas virtudes, mas não exageres. Deixei um prato no forno, provavelmente esquecerias de se alimentar.
Se cuide.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

As calçadas socialistas

Por força habitual, caminho, diariamente sobre as calçadas maltrapilhas que servem de moldura às ruas esburacadas. Meus passos seguem, diariamente, trajetórias que se equivocam a cada casa, a cada mudança brusca de fachada, novo piso, nova forma e confusas saliências. Salvo as estrelas deixadas por cães ou donos, sinto prazer de minha andança diária.
Nos dias de chuva, os passos que naturalmente seguem, se perdem na imensidão de riscos e escolhas. Logo, sentem saudade de minha terra antiga, perdida em quilômetros de memória.
Nesses dias, quando guarda-chuvas tomam o cenário urbano emprestado, a batalha exercida pelos pés é descomunal ao tamanho espacial destinado aos transeuntes. A corrida rotineira contra o tempo se apresenta com vestígios de falta de educação e tato. O mundo em sua subconcepção.
Meus sapatos, comprados de acordo com o bom gosto e não bom tempo, não se situam em dias assim. Em por, sobre, entre e através de ardósias, fileiras de jardim, cópias desonrosas de Ipanema, obras-primas trabalhadas meticulosamente para atrapalhar o sentido alheio, trajetórias projetadas para proporcionar escorregões, batidas, leves desequilíbrios e tombos vexatórios, desconsertantes, tento seguir.
No ritmo estável de crescimento de crédito, temo encontrar novos projetos de desordem ambiental e estrutural, nos poucos anos que ainda me faltam.
Na confusão de minha trajetória e espera, novamente penso nas minhas origens, de calçadas retas e retificadas em que se prolongava a mistificação de uma escolha, de um único caminho já traçado por medidas anteriores.
Visto de lá, o problema daqui não é a chuva.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Sobre os tempos meus e de minha avó

Ao entrar em casa e me deparar com mais um relógio sem bateria, parado, exigente de manutenção, sinto uma estranha sensação sobre a resolução do que poderá ocorrer. Nos últimos vinte dias, passados solitariamente devido a separação, esta é a quarta bateria de relógio a ser trocada.
Não sei ao certo quantos relógios possuo em casa e confesso que só os percebo quando de sua atividade, nenhuma. No passar do dia, não me situo em nenhum dos tempos, agora trocados. Só os mantinha ativos nas mudanças ocasionadas pelo horário de Verão.
A greve dos ponteiros, já havia resolvido apelidar a situação na troca do terceiro relógio, numa sequência curta de dias indica atraso de vida, palavras essas de minha avó.
Quando os fatos agem na figuração da fé, a consequência faz sentido.
Tendo a querer acreditar.
Devo, então, procurar os relógios inválidos que tanto me arruinam a vida. Algum relógio, há muito escondido numa gaveta, capaz de ser a razão de minhas discórdias conjugais.
Mas, há de se pensar na rebeldia de um tempo presente, um castigo pelos anos de desperdício profano, de reclamações sobre a perpétua falta, esparramado pelo sofá.
Penso no possível das probabilidades e chego ao mundo das coincidências, deixando de lado assim a fé.
Me conjugo na ciência das coincidências, campo seguro dos ocupados, afinal, superstições são conceituadas apenas nos tempos de minha avó.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

As Possibilidades

Sexta-feira. 12 de junho. Guilhermo Guirón, célebre escritor, falece em sua casa. Seu sobrinho, que o encontrara, rapidamente contou à sua mãe que então contou ao seu sobrinho, que dado o ocorrido se tornara órfão. Uma biografia já foi encomendada para pagar as depesas do funeral.

Sexta-feira. 12 de junho. Guilhermo Guirón, viúvo, morre em sua cama. Sua irmã o encontra já sem vida, o que a deixa sem ação por indeterminados minutos. Com palavras átonas de lamentação, ela explica o óbvio para seu filho e sobrinho. Ambos são confortados na ciência de um abraço.

Sexta-feira. 12 de junho. Guilhermo Guirón, pai de família, se despede da vida em silêncio no descanso do lar. Seu flho, confuso pela ideia da obrigação de estar só, se atira da janela do quarto em direção ao jardim. Percore três andares até o definitivo fim. A família, irmã-tia e sobrinho-primo, souberam de ambas as mortes e por elas lamentam.

Sexta-feira. 12 de junho. Guilhermo Gurón, solitário, é encontrado morto em sua casa. Seu filho, sua irmã e seu sobrinho talvez não saibam. Há anos não se falam ou se importam. . Até o dado momento, não há qualquer indício de quando ocorrerá o enterro. Enfim, poucos são os que lamentam.

terça-feira, 6 de julho de 2010

O pelo do peito do pé

Na primeira vez, vi-o natural: um pelo no peito, bem no meio do meu pé. Livrei-me dele do mesmo modo que o olhei. Não sei bem se, no dia, fazia sol ou chuva lá fora.
Quando da segunda aparição, ele surgiu-me num dia chato, recheado de defeitos e outros desprazeres efêmeros que se acarretam por detalhes alinhados em queda. Nesse dia, carregava uma intensa fúria que o encontrou de frente, um sentimento livre de dúvidas e que não percebe certos detalhes.
Após a profusão de trauma e karma, comecei a sentir uma leve sensação de perda, quando ainda o carregava em meus dedos, quando me deparei com a autoflagelação constante que ali deveria ter fim.
Em sua terceira presença, juro, tentei me controlar. Fiquei a observá-lo por um bom tempo e a certos amigos até o apresentei. Naqueles dias ele era meu fiel escudeiro, companheiro íntimo, ciente de minhas raízes e particularidades.
Nos meses que se seguiram, Outono e Inverno se representaram. Na chegada da Primavera, ele não mais lá estava. Deve ter morrido de morte sozinha. Não fiquei a lamentar possíveis saudades.
Em alguns momento dei por falta dele, achava estranho olhar para o peito de meu pé vazio. Imaginei ser coerente a vida de um pelo, só partir quando chegada a hora. Fúrias e travessuras o fariam resistir e retornar até que o tempo decidisse por interromper sua vida.
Passado justamente mais um tempo, num presente troiano de Deus, o pelo retornou ao seu posto de origem. Parecia descansado e abençoado por longínquas férias, disposto a lutar por um lugar ao sol.
Encarei sua artimanha como uma afronta e arranquei-o num único estalo. Tive a crueldade de esmagá-lo sem lavar as mãos.
Mais rápido que suas antecessoras vindas, ele apareceu novamente, desta vez num dia receptivo. Um dia reservado para a contemplação de esquisitices, sua aparição se enquadrava deliberadamente nos moldes pesquisados.
Passei a tarde verificando tamanho, espessura, coloração e peculariedades. Fui dormir pensando em possibilidades.
Numa vingança impossivelmente planejada, acordei sozinho e só. Sem qualquer explicação razoável ou rastro. Não tive dúvidas ao concluir que se tratava de uma fuga. Partida para o paraíso de certas ausências.
No último verão tive com ele uma breve passagem. Passava momentos em emprestada casa litorânea. Era fim de madrugada íntima quando percebi seu estado, devidamente afogado, estirado sem sopro e estatelado no peito de meu pé. Matei-o sem saber de sua vida, amornado em prazeres casuais.
Neste agora de sua aparição, vejo-o voltar pela talvez-não-última vez, numa relação nutrida de conformismo, esperança e aparência. Nas diversas vezes aparecidas ele parece ter um mesmo tamanho, possivelmente desmentido em graus que não se percebem na fé de um míope.
Sua volta, então, representa a existência de um ser único, semelhante ao próximo, um perfeito rebelde residido em mim.
Em outra perspectiva pode ele ser semelhante ao gato em sua existência. Sim, poderia ele pertencer felinamente sob a custódia da pele e assim reencarnar com as chamadas sete vidas.
Não há dúvidas, terei de arrancá-lo. Em caso de equívoco, ele certamente retornará.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Quero um Deus

Quero um Deus que me seja permanente e palpável
de lábios carnudos e olhar displicente
que me toque as mãos e os pés simultaneamente.
Quero um Deus saboroso
um Deus fruto de meu atingível
um Deus propagado na atmosfera íntima de dois corpos
que me afague em todos os seus braços, pernas, cabeças e sentidos.
Quero um Deus presente em toda sua virtude e piedade
um Deus beijo-abraço-divino-apertado
que me penetre e que de todo me alcance
um Deus que assim seja.

Quero um Deus por assim dizer
que me ouça e que me escute
um Deus que acompanhe minha rotina por divertimento conceitual
que me arranque, por enquanto, desse lugar comum
que me socorra sem que ocorra alarde
Quero um Deus de singularidade plural.
um Deus interrompido por minhas contradições
que se me situe que o faça logo.
Quero um Deus que me doa o necessário.

Um Deus que aja e que haja
um Deus completo em sua amplitude sem vias malsujas de propaganda e ressurreição
Quero um Deus de graça.
Um Deus purificado para assim me ser
um Deus verdadeiro ou à mim corrupto
quero um Deus sem impostos
que respeite minha solidão.
Quero um Deus de acordo
um Deus Senhor do Tempo para do presente destoar.
Quero um Deus que tudo saiba e nada digue.

terça-feira, 8 de junho de 2010

Da janela

Na mesma hora de ontem e dos dias que se seguiram invertidos, Joaquim se debruça confortavelmente na janela para novamente poder ver o jogo de bola que acontece na rua.
Nem se fez a digestão do almoço, os meninos se dividem em dois times, riscando linhas nos paralelepípedos que se estendem e se extendem até o esconder do sol. Os uniformes se alinham em com e sem camisas. Nem mesmo a previsão da semana é capaz de desorganizar as regras das vestimentas.
Joaquim, do alto de seu camarote, aguarda anciosamente o começo do jogo. Se sabe que o menor dos jogadores é o mais habilidoso e que os dois maiores são mais valentes que eficentes. Os outros se variam na formação dos times.
As marcas desgastadas das guias são ruínas de outra geração. O suor de pais, tios e conhecidos perpetuados no decorrer de décadas.
Sentindo certa ausência, Joaquim olha para o retrato gravatal de seu pai. Na foto não há qualquer sinal de que um dia, em sua trajetória, tivesse o que chamam de infância.
A algazarra começa antes que as perguntas lhe brotassem despertas. Na rua um assovio que indica o gritar de uma mãe sobre a lição que não fora aprendida, uma nova medição do gol adversário, um leve deslanchar de tijolo, meio passo, e um princípio de confusão. Todos olham a bola e o jogo começa.
Joaquim se imagina num desenrolar de alegria despojada. O menor dos futebolistas demonstra, concorre, abusa de sua superioridade. Na janela, orgulho e simpatia admirada.
No lado de dentro do apartamento a mãe tem um coração partido, fica a olhar o menino que agitado se assemelha ao pai. Se emociona e se vangloria por qualquer partida. Sofre sozinho ao gosto das derrotas.
Mais um pouco. O jogo acaba e o sorriso de Joaquim também.
Nostálgico, tenta se contentar com a partida do sol.
Inesperadamente um pássaro azul pousa no plano chumbo do parapeito. Observa e se deixa observar de dentro, por entre o vidro levemente embaçado.
Num gesto particular, como se pudesse lhe oferecer companhia através de um mimo, a mão pede ao filho que deixe o passarinho entrar. O menino não acha boa ideia, diz que se sente melhor observando, gesto propriamente materno e sanguíneo.
Calado e um pouco cansado, ele se retira da frente da janela, se afasta para amanhã, após o almoço, retornar.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

A falta

As sete e quarenta da manhã o despertador soava pela terceira vez sem que houvesse qualquer animação da parte do subordinado.
Antes de começar, estava atrasado. Levantou apressado.
Pelas contas de ontem, trabalhou cinquenta e quatro horas semanais nos últimos dois meses. Antes de pensar em argumentar, estava cansado. Se fazia de exemplo na tortuosa rotina do mundo moderno, acumulação de tarefas ao invés de proveito do tempo.
Lavou o rosto como se houvesse meio de disfarçar as lágrimas. Se esquivou da falta de brilho do espelho para que seu reflexo não confrontasse suas preocupações. Envelhecera por demais nos últimos dias.
Sem reconhecer a manhã que o imitava lá fora, pensou em se recolher, discretamente. Depois de pouco pensar, permitiu-se.
Voltou ao conforto do travesseiro. Deleitou-se nas boas manhãs que são feitas para dormir e reconfortar os sonhos humanos. Fechou os olhos num instante para melhor permanecer no vazio, sem culpa. Decerto não iria se honrar pelo árduo trabalho diário.
Pensou nas ocorrências. Deveria arrumar uma desculpa.
Divagou, ainda de olhos fechados, sobre os que dele dependiam. Mesmo assim adormeceu.
Acordou por volta de horas e horas mais tarde. Revigorado e renovado. Irresistivelmente perdoado.
Tomou um merecido desjejum. Se alongou, se espreguiçou e sorriu. Escolheu um livro na estante e um tempo no sofá. Deixou pra mais tarde a elaboração do motivo da falta, da ausência.
Já no meio da tarde cogitou diversas possibilidades: Algum tipo de alergia, nada que pudesse ser percebido futuramente. Um acidente doméstico, um subterfúgio familiar, uma inexplicável perda de sentidos, amnésia...
Resolveu implantar uma ideia mais conservadora e urbana.
Pegou o telefone.
Com voz lastimável, disse ao chefe que sofrera um acidente, nada grave, de carro, no banco do carona, estava sem cinto, batida leve, sem qualquer estrondo ou peculiaridade. Dissera que, porém, como batera a cabeça no vidro, seu amigo achou melhor levá-lo ao hospital, apenas por precaução. O amigo ficara preocupado com a localização da batida, a cabeça. Não, não houvera maiores danos, mas fora impossível avisar.
Seu chefe compreendeu.
Ficou o resto do dia a declarar vitória. Um dia livre no meio do turbilhão profissional derradeiro. Descansou e sorriu como nunca fizera antes.
No fim do dia, se preparou para dormir. Antes de deitar, desceu à cozinha para um último copo d'água.
Na volta, na cozinha, no corredor e na escada, silêncio e escuridão. Ao subir, perdeu o quinto degrau, pisou em falso e ralou a testa no corrimão em caracol. Em suas palavras signos e impropérios de mau humor.
Quando se olhou no espelho, se viu machucado. Tinha na testa a marca dos acidentes mencionados, no coração a certeza da dor. Acreditou se tratar de um castigo justo e inevitável, a justiça ele admirou.
Dormiu remediado.
No dia seguinte acordou com o vigor do dia anterior, com semelhante disposição e cenário. Relembrou a véspera. Diante do espelho pensou em suas ações e se enumerou na justiça merecida.
Saiu para trabalhar.
Sozinho, dirigiu por dois quarteirões até se chocar com outro carro, no cruzamento. Sentiu-se desolado.
Dessa vez, achou a vingança infantil, mas preferiu o silêncio às blasfêmias.

segunda-feira, 31 de maio de 2010

Uma carta para dois amores

Dos três que acarretam essa situação, sou o mais leviano insensato. Temo um certo receio em expressar as palavras que carrego em meu peito, temo por saber que essas palavras devem acertar um outro peito e ainda outro, com sentimentos comuns, passionais e alternados.
Saibam que eu não seria capaz de demonstar, em momento algum, meu amor por você à ela e por ela à você. Os modos e maneiras são distintos, e no coração adverso há um diferente tipo de perdão.
Sei que não se deve amar dois sonhos, mais de um futuro simultâneo. Sei que a saudade pode ser esquecida ou ludibriada, caso não haja o sentimento da perda. Sem a falta não há a presença. Nada se faz.
Um amor dividido permanece somente em laços de sangue, mesmo assim, por detalhadas preferências, há o desejo de querer bem um pouco mais para um do que para outro. Nesse casos os filhos tendem a entender mais rápido do que as mães. No nosso caso, sempre soube ser filho.
Confesso que nunca tive a intenção de ter um caso ou me manter em outro, juro. Tudo fora fruto do acaso, interpretei equivocadamente suas necessidades de ficar sozinha e acompanhada. Nunca prometi o que deveria ser desejado, mas esqueci da culpa no que fora planejado.
Não espero perdão, nem daqui nem do outro lado. Também não espero ser escolhido, de nada seria justo, correto. Desejo o fardo de ficar só, sem ter de escolher entre beijos e lágrimas.
Minhas palavras são como menções de desabafo, nada mais. Devia a verdade, tanto para você como para ela. Não sei quais seriam inadequadas ou repreendidas, o certo é que prefiro o vazio das hipóteses.
As coisas ficarão bem, espero. Quando tudo se estabilizar, serão mais felizes. Tem de ser assim, senão for, não será mais por mim. De tudo que espero nada esperem de mim.
Saibam que um coração machucado possui a alma raptada e a certeza de encontrar alguém que lhe seja parte integrante.
Torço para que sejam.
Adeus.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Um sonho

Amor. Não sabe o que me aconteceu. Você está dormindo? Foi um sonho bem ruim!
Sonhei que, numa manhã parecida com amanhã, você acordava antes de mim, antes que o sol pudesse entrar pelas frestas da janela, antes que outros homens pensassem em esboçar algum bocejo.
Você levantava sem fazer ruído, me olhava do alto da cama, desmembrando a passividade de meus cuidados e obrigações. Saía na ponta de um pé, depois o outro, até chegar ao banheiro, acendia a luz e logo fechava a porta para não atrapalhar meu descanso. Lavava o rosto com as duas mãos em concha e detectava detalhes facilmente perceptíveis ao reflexo do espelho. Suspirava fundo, duas vezes para não haver dúvidas, colocava pouca pasta de dente na escova, que um dia já foi minha, e tentava esquecer detalhes recém descobertos. Abria a porta do banheiro, com mais cuidado do que havia fechado, e saía do quarto com destino a mais um dia na vida.
Já na cozinha preparava seu desjejum, tomava meio copo d’água e escolhia algo saudável na fruteira ao seu lado. Encostava na pia e refletia sobre os fortuítos cotidianos, sobre o futuro de um ano e sobre a certeza de seus sonhos. Abria a segunda gaveta à sua esquerda e tateava seu conteúdo em busca de uma faca, sabia exatamente o lugar de todos os utencílios domésticos, visualizava a colocação perfeita dos objetos da casa, do espremedor de laranjas ao ralador de queijo. Descascava, sem melhores compromissos, uma maçã verde, cortava-a em oito pedaços e guardava para mim a metade.
Colocava em fervura a água para o café e ia à dispensa em busca de pães para fazer torradas. Abria a geladeira e encontrava geléia e manteiga para o acompanhamento das torradas e de algum biscoito encontrado na dispensa por acaso.
Inebriada pelo cheiro de seu café eu acordava, anciosa para encontrar meu digníssimo amado. Lhe oferecia um carinhoso bom dia e um beijo na ponta de seus lábios. Perguntava o motivo de não ser acordada, só para ouvir você falar que não era preciso me incomodar e que o casamento representava a união de prazeres e deveres.
Logo após o café você voltava ao quarto, se vestia de forma impecável, quase cafona aos olhos dos invejosos, e perguntava, sem olhar diretamente pra mim, como estava. Voltava ao espelho e se ajeitava por alguns segundos a mais. Saía de casa distraído, sem as chaves e se esquecendo de me dizer até mais tarde, minha linda, meu anjo, meu amor.
Nas ruas, olhava os outros para entender porque tanto te olhavam. Adimirava qualquer menção à sua pessoa e se deleitava num sorriso costumeiro e amável aos que estavam instalados nas calçadas. As saias, que transitavam no piso urbano, serviam de paisagem, floridas e ensolaradas enfeitavam seu trajeto até o ponto de ônibus. Contava dez carros que passavam até a chegada do veículo público, suas coincidências sempre foram mais relevantes que sua pontualidade.
Ficava no corredor, em pé, à espera de algum sinal que lhe fizesse tomar partido, que lhe fizesse sentar próximo a uma jovem de olhos castanhos ou uma mulher confiante, semelhante ao seu semblante, mas não ao seu perfil. Enfim decidido trocava olhares com a simpática moça que chegava a se envengonhar com sua timidez praticada. Por um ou dois quilômetros se tornavam íntimos, calados e serenos como a maioria dos casais.
Descia próximo ao seu trabalho com a certeza de que este seria mais um dia para se viver e saborear, respirava a brisa que enobrecia a manhã e caminhava, desejando bom dia e bom-dia.
Trabalhava.
Perto da hora do almoço não suspirava ao ouvir os sons cançados de seus colegas nem se comovia aos trejeitos dos injuriados. Olhava para o seu relógio em contagem regressiva, do tempo.
Deparava-se com seu prato e sentia um pesado gosto de rotina na boca. Certamente não se deliciaria com meu belo picadinho, não se vangloriaria de ter em mãos um banquete dos deuses, não convidaria seus amigos de turno para o almoço de domingo, preparado com carinho por sua amada esposa. Você não faria isso. Silenciosamente iria mastigar 23 vezes cada garfada de seu laborioso almoço.
Voltaria a trabalhar, não sem antes fumar seu Gauloises escondido.
Ao fim do dia, você permanecia por mais quinze minutos (breve sensação de dever cumprido, comprido e diário). Voltava para casa rodeado por saias que não brilhavam com tanto vigor, afinal as mulheres de hoje também se sentem cansadas. Se ocupam em pensar em seus deveres, pensar em contas que seriam problemas e que os problemas seriam as contas.
Chegava em casa, sorria para mim com o que sobrou da simplicidade plástica e me beijava ao pé da orelha. Sentava no sofá, se afastava do mundo lá fora e ficava só de meias e chinelos. Dessa vez você esqueceria de cheirar minha nuca e dizer que fico linda de avental.
Jantava num silêncio provocador, observava as manchas de umidade que se aculuvam na parte esquerda da parede, e logo se retirava da mesa de jantar. Esta noite você não dançaria comigo na sala ao som de Carlos Gardel, nem tentaria me convencer de que noites como esta e todas as outras noites deveriam ser celebradas ou caluniadas, dependendo da situação de algum amigo, colega ou camarada.
Sozinho, você se dirigia prematuramente ao quarto, apagava a luz de uma vez, deixando para mim os vestígios de um único abajur.
Eu, então, choarava ao pé da cama enquanto você certamente não me ouvia, se preparava sozinho ao dia seguinte e ao seguinte e ao seguinte.
Em menos tempo que o habitual eu lhe abandonava.
Amor. Você está dormindo? Que bom!

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Se te odeio é porque te amo

O que se segue aqui não é meio de justificativa ou perdão. Fiz o que fiz porque fiz. As conclusões que se seguem a partir disso são resultados de ações que vulgarizaram um suposto isso.
Nos sentidos da vida fui extremo e ponto. Nas complicações cabisbaixas sofri, nas exaltações vigorosas amei, os restos dos dias fingi viver. Houve um tempo em que simplesmente não quis, e assim sobrou-me ódio e depois o tédio.
Para o bem e para o mal os cursos seguem. Toda prova se concretiza às custas de um exagero, mesmo que este reflita o desejo de não exagerar. Se me exaltei, lamento mais as vezes de amor que as de fúria. Todo exagero é uma forma de auto-engano, e que passamos.
Se me arrependo é pelo amor que talvez conhecemos, que traçou rotas ao inegável sentimento de fantasiar. Desejei mais e depois menos. Assim as coisas acontecem.
Aplicado num contexto familiar, brigamos com quem amamos para conhecer o perdão, a culpa e o arrependimento. Para nós o modelo não serve, verificado o laço de sangue dos envolvidos. Tiramos, disso, apenas o exemplo.
Nos devemos em diversos planos que acarretaram fatos, nos preocupamos com um certo equilíbrio, uma condição equivalente que nos faria seguir e, por vezes, aprender.
Em possíveis expectativas fracassamos.
Se lhe fiz amar, fiz sofrer. Se lhe apresentei doloridas lágrimas, elas lhe fizeram companhia. Foi de minha imagem solidão.
Agora já não sinto nem reflito nada.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Infância

Desde pequeno sofri por más interpretações de sentimento. Tentei, no fundo de meus prazeres, corresponder ao máximo de todas as expectativas credenciadas.
Me lembro que, ainda no elementar, fui coroado como melhor multiplicador da classe. Imbatível nas vezes do sete e do nove, acertador de dez entre dez perguntas, atingindo o possível do possível.
A tarde se notabilizou em festa por mim, o anfitrião e meus convidados, numa mistura de euforia e felicidade. Caminhamos de volta, radiantes e aconchegados.
Cheguei em casa carregado de elogios e até um doce ganhei da tia da cantina. Sentado na poltrona da sala, meu pai aguardava, decorando o conhecido sermão dos atrasados.
Num olhar meu sorriso se escondeu. Ouvi em pé à porta, alguns minutos de sabedoria que me fizeram calar o orgulho. Senti em primeira instância a dor da perda.
Com lágrimas nos lábios justifiquei os acasos do tempo por meus motivos e tirei do bolso o papel do doce já todo amassado. Faleci na aparência de um egoísmo. Olhou-me com olhos de rei e ordenou que eu fosse ao quarto.
Nas competições que se seguiram, errava em quando desse a hora, por volta das cinco, ciente de meu prejuízo. Voltava sozinho pra casa.
As tardes assim se seguiram, até que, enfim, perdi o gosto.
Na ausência de habilidades me tornei conhecido por ser filho dele. Por todo o caminho surgiam saudações ritmadas pela cidade e a cada saudação uma nova sensação de falta.
Ainda nos períodos infantis, numa noite de festa, ele se fez alegre e sadio. Encheu-me de elogios atrasados e comemorou todos os meus motivos e planos. Um leve desenhar sorridente surgiu em seu corado rosto. Dormi sem sonhar para não sobrecarregar o cronograma.
Na manhã seguinte, o velho ranzinza emblema. Olhou-me por cima dos óculos e exigiu silêncio. Ainda tive coragem de dizer que o amara na noite anterior, sem ressalvas. Mandou-me calado ao silêncio.
Vivo com ele até hoje.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

o espelho (ohlepse o)

os que passam por mim de repente passam sem me notar. às vezes se voltam,
˛matlov es sezev sá .raton em mes massap etneper ed mim rop massap euq so
se olham e seguem, outras vezes voltam para outras voltas, para outros
sortuo arap ˛satlov sartuo arap matlov sezev sartuo ˛meuges e mahlo es
olhares que se seguem. por vezes não olham, não voltam, mas seguem.
.meuges sam ˛matlov oãn ˛mahlo oãn sezev rop .meuges es euq seralho
fico em momentos um bom tempo a esperar, alguns estranhos ora passam e
e massap aro sohnartse snugla ˛rarepse a opmet mob mu sotnemom me ocif
param, são olhos voltados para si que não para mim, poucos desses são os
so oãs sessed socuop ˛mim arap oãn euq is arap sodatlov sohlo oãs ˛marap
que me notam e de frente nenhum.
.munhen etnerf ed e maton em euq
quanto maior narciso menor a percepção, sendo que os literalmente externos
sonretxe etnemlaretil so euq odnes ˛oãçpecrep a ronem osicran roiam otnauq
tem críticas a mim e não a si. os literalmente opostos de longe me olham,
˛mahlo em egnol ed sotsopo etnemlaretil so .is a oãn e mim a sacitìrc met
aspiram vontades e não se desejam. não aprecio olhos de ambos, olhos que
euq sohlo ˛sobma ed solho oicerpa oãn .majesed es oãn e sedatnov maripsa
não buscam somente, que se sentem escravos de meu interno de seus
sues ed onretni uem ed sovarcse metnes es euq ˛etnemos macsub oãn
externos.
.sonretxe
pra ser sincero gosto dos neutros e das crianças curiosas.
.sasoiruc saçnairc sad e sortuen sod otsog orecnis res arp
no caso dos infantis me agrada o agrado, a magia referida à mim, olhos que
euq sohlo ˛mim á adirefer aigam a ˛odarga o adarga em sitnafni sod osac on
percorrem atrás, sobre e entre minhas dimensões. pena que a vaidade venha
anhev edadiav a euq anep .seõsnemid sahnim ertne e erbos ˛sàrta merrocrep
substituir esse fantástico vislumbramento. é a idade em que se olha para ti e
e it arap alho es euq me edadi a è .otnemarbmulsiv ocitsàtnaf esse riutitsbus
não para si.
.is arap oãn
para os neutros guardo conquistas e segredos, e nem por falecimento mostro.
.ortsom otnemicelaf rop men e ˛soderges e satsiuqnoc odraug sortuen so arap
o excesso refletido em anos se estabelece em meros detalhes. me olham como
omoc malho em .sehlated sorem me ecelebatse es sona me oditelfer ossecxe o
se eu fosse parte de um retrato, como um preenchimento. me vêem antes de
ed setna meêv em .otnemihcneerp mu omoc ˛otarter mu ed etrap essof ue es
se verem. dividem seus sorrisos, olheiras e rugas. me preferem a seus
sues a mereferp em .sagur e sariehlo ˛sosirros sues medivid .merev es
melhores amigos, normalmente amigos neutros que também me preferem.
.mereferp em mèbmat euq sortuen sogima etnemlamron ˛sogima serohlem
mesmo assim sou de um, de alguns, de todos e nenhum. sou quase partido.
.oditrap esauq uos .muhnen e sodot ed ˛snugla ed ˛mu ed uos missa omsem
que rejuvenesce e envelhece só com os outros. apesar disso me mantenho.
.ohnetnam em ossid rasepa. sortuo so moc òs ecehlevne e ecsenevujer euq
em minhas reflexões a semelhança não é mera coincidência, os que me olham
mahlo em euq so ˛aicnêdicnioc arem è oãn açnahlemes a seõxelfer sahnim me
desejam ser olhados, os que se aprumam desejam ser desejados e os que me
em euq so e sodajesed res majesed mamurpa es euq so ˛sadahlo res majesed
fogem tem em si parte de uma escuridão íntima, sem caráter.
.retàrac mes ˛amitnì oãdirucse amu ed etrap is me met megof

terça-feira, 18 de maio de 2010

Digno adeus

As palavras que lhe serão ditas deveriam ter sido dispostas na noite de ontem, mas confesso que faltou à mim, coragem. Tinha de crer, primeiramente, na ausência de seus sentidos.
Nossos anos se passaram, enlaçados em mentiras, desejos e distância.
Fui parte de seu cheiro, motivo de suas blasfêmias e reencontros. Cheguei a cantarolar em sua memória e só não me portei como sua escrava porque nunca me foi permitido, nunca lhe fui digna de opção.
Mesmo nas noites em que lhe faltava um beijo estranho, um respiro de tranças novas, não havia de me procurar. Resignava-se na própria melancolia, dominando-se de saudosismo, literário ou cru.
Houve momentos de nossa história em que me rubria a face vê-lo triste. Sua quietude, assim, me transparecia confiança, me trazia um sentimento comum, um momento afável de conduta. Mas a breviedade de suas emoções logo me alertava aos motivos de meu amor.
Sem dúvida sempre soubemos de nossa vocação, nos completamos como pólos, tendo pontos em comum apenas no horizonte. Sentíamos figurações distintas de um mesmo plano, como se enxergássemos o avesso do outro reparado em versos (passagens contínuas e constantes).
As lágrimas que me enobrecem agora são delírios de agonia, são a vazão de um sentido inacabado.
Uma parte de mim se deflora, provocando distância às lembranças suas, aos desejos meus e às esperanças de outrora.
Percebo agora que seu rosto parece cansado, talvez minhas palavras estejam lhe envelhecendo, embalsamando sua pesada feição. Mesmo calado, pensativo, não faz questão de voltar os olhos à mim. Sabidamente minha linguagem nunca lhe proporcionou notável provocação.
No silêncio de nossos anos, na preocupação de tempo e espaço, buscava razões para partir, mas desde de os primeiros toques de seus dedos fui corrupta ao seu destino. Nem em gritarias triunfantes pude me afastar.
Já distante, minha juventude enfim se despede, migra para um ponto rijo de seu rosto opaco. Peço que a leve junto como um prêmio, que a castigue por determinados anos e que a enterre em seu coração junto ao meu.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Uma tarde para Yann Tiersen

Os primeiros pingos começam a cair, são lágrimas meticulosamente desenhadas que falecem furtivamente sobre as possiblidades de um plano. Uns sobre os outros deslizando em seus trajetos. Unidos, trasparecem a limpeza da alma até o subsolo.
Os transeuntes miram o céu, como se estivessem surpresos, como se fosse a primeira vez que gotas d'água os banhassem. Alguns permanecem, outros se esquivam e se apressam para o lado de lá. Poucos são os desavisados na multidão.
Os guarda-chuvas tomam suas posições e começam a florir. Um belo xadrez se abre e se contradiz em meio à atmosfera cinza que percorre a paisagem. Em seguida surge um vermelho maior, fazendo inveja à uma grafite sombrinha, desbotada e chata. Outro, listrado em vermelho e branco, ultrapassa muitos no corredores anônimo da esquina.
As águas discorrem fervorosamente em meio a pluralidade de acessórios pluviais que se espalham.
Duas botas amarelas afundam no ambiente, perto da guia despejam vida para todos os lados. Da janela é possível ver a dança pertinente dos calçados. Na plateia duas margaridas brincam suavemente no jardim, desejando a seiva feita para alimentar.
Vindo de longe uma bicicleta corta o trânsito, dois similares apaixonados se esbanjam e fazem roda em festança juvenil. São só crianças num parque de diversões. Olham para cima, para trás, para o mundo, se olham e seguem um destino a povoar.
Sob o coberto, um alguém de meia-idade profere blasfêmias insensíveis contra o tempo, uma senhora, por azar ao lado, concorda com as anedotas do rapaz, uma outra descorre, uma outra sorri e outra mais por lá também. Todas seguem sem intervir.
Um tom, de um azul bem clarinho, se desmancha ao ver as gotas que lhe caem. Solta um sorriso ainda travesso e puxa o vestido florido na altura de seu olhar. O vestido, encharcado, não demonstra a devida atenção.
Na quitanda em frente, os frutos são observados com satisfeita atenção. Sabe-se que o morango está na época, que a maça é argentina e que as alcachofras tem coração. O alho-poró é tratado com admiração por unhas cada uma de uma cor.
Do outro lado da rua um pneu, cansado e careca, clama por sua aposentadoria. Num súbito de dor e fadiga, se esfacela em seu túmulo, improvisado e molhado ao pé de um poste de luz. Não há tempo para lamentações, um outro modelo, mais novo e preciso, tomará seu lugar.
Na janela, agora, pouco se vê dos lá de fora. Rastros úmidos se formam na vertical, a vista embaçada traz um breve sentimento de angústia. Os olhos correm para ver o que há atrás da porta, na rua. Sentir de perto as cores, os cheiros, os toques e os sentidos, antes do sol voltar e se aconchegar.
Por acaso minha mãe não deixa.
Ainda chove.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Sem trair

Seria mais fácil se você fosse sem porquê. Sem a motivação de desejos que nunca serão correspondidos. Sem o sentido inapropriado de sua oratória.
Não há, para nós, um palpável destino. A manutenção de um sonho se vitaliza na impossibilidade, sua concretização pode fazê-lo, simplesmente, acabar. Sem os sonhos não somos nenhum.
Não fomos suficientemente o que esperávamos. Nunca esperávamos um ao outro, o que certamente nos distanciava. Não creditamos a esperança porque não cabia à nós.
A harmonia de nossos olhos era cúmplice de um tempo, um momento, era. Cientes num plano, num campo, numa estrada. Chegávamos a ser para ter no que nos apaixonarmos. Ficávamos.
Nos dias que se seguiam, nos perdíamos de fato. As razões e os motivos não mais interessavam. Sentíamos um mundo que se perdia e que não se justificava. Acatávamos, de maneira solidária, a pertinente ausência.
Saíamos sós e traçávamos novas liberdades. Longe um do outro sabíamos ser mais felizes. Socialmente éramos eficazes e capazes.
Até que um de nós voltava.
Os sentidos memoravam a razão original, as mãos se tocavam atraídas, um leve palpitar nos chegava à boca e uma brisa atraente nos tomava os anseios. Voltávamos a sensação de nostalgia e repetíamos os defeitos de fidelidade. Juntávamos promessas que não eram nossas e acreditávamos.
Uma velha companhia que acarreta uma nova separação. De um modo justo o mundo se repetiria e nos distanciaríamos para um sempre.
Antes que os anos nos tornem saudosistas, prefiro que você parta.

sábado, 8 de maio de 2010

A linda mulher que não (ex)tive

E ela me apareceu, desenhada num perfume que me elevava e me levava à um infinito pessoal. Seus olhos me fitavam como se eu pertencesse à última espécie humana, espécie como a de poetas gatunos ou trabalhadores esforçados. Tais olhos permaneciam como amêndoas, aguardando o linear da primavera, solitários casulos ainda verdes que esperam um último raio de sol para que, enfim, pudessem amadurecer. Seus cílios flutuavam em movimentos perspicazes, cambaleando cima-baixo como a brisa matinal, provida de além-mar.
Durante alguns segundos, o verde de seus olhos desejava lançar-se em alto-mar. Logo eu a seguiria. E assim ela mexia, fora o sentimento em contornos certos, concretos. Ela piscava, olhava e ria. Como ria!
Seus lábios assim disfarçavam, migravam vagarosamente ao pólo de seus rosto, sem enrosco, deslizava em sua superfície fina e de tonalidade outonal. Seu riso parecia perpetuar um horizonte fotográfico, de baías e Bossa Nova. Quantos suspiros almejaram-na? Quantos congelaram em sua morna fronte, em frente aos montes pecaminosos de seus lábios? E eu? Permaneço em foco.
Traços tristemente alinhados perpendicularmente aguardavam desatinamente a colisão de sentidos, a franqueza de agarrar com as mãos as estrelas da noite.
Dia-noite, eu observava lentamente o roseiral sensível de seu corpo. As cores brincavam de se espalhar, ora emudecendo pelas estações anuais de seu corpo, ora enrubescendo pela inconstância de movimentos. Girando diante de uma única alegre lágrima, que adentrava o rosado de suas maçãs, seus cabelos esvoaçavam, como se aguardassem um abraço, um retrato, ainda que fosse pitoresco.
E assim fixava-me, eternizava-me na sombra secreta de seus diários, refugos cenários de seriedade febril. E depois acordava, desejava-me bom dia, recolhia seus encantos e ia passear.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

A escolha de Matisse

Sei que talvez não deveria pedir aprovação. São minhas vontades contra a sua vontade. Devo obedecer as minhas palavras por ordem social, afinal, não chegamos aos tempos modernos. Não possuímos um padrão familiar, eu sei, mas somos o que somos e assim continuamos. Sabemos só que o nosso legado é pó e não fincamos raízes. Partimos porque podemos e vamos! Por favor não me olhe assim.

Não vou mudar, vamos mudar! Conheço suas cerimônias que foram minhas há trinta anos. Quero ir, posso, pelas cores, pelo carnaval, pelo brilho natural que se assemelha às pinturas. Relevaremos as curvas. Retificaremos o horizonte, os vários, em olhares. Seus brilhos tendem a derivar do meu e isso nada tem de mal. Devemos ir. São minhas escolhas apesar de você fazer parte. Não deveria soar dessa maneira. Por favor não me olhe assim.

Entendo seus motivos, mesmo assim não mudo meus modos. Nunca mudei e por isso desejo ir. Só para ir eu quero. Não, não há planos concretos, há a concepção fatídica de um sim, das cores internas excomugandas, as cores que crio em mim e nos outros. Também considero suas cores e entendo, entendo sim. As cores em mim e em você não tem sentido de direção, não possuem raízes, não se coordenam por bússolas, não dependem da continência do sol, da dilacerante chuva, do amarelo outono marrom... Tudo bem, não vamos! Por favor me olhe mais assim.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Frutos de um casal

Descartou por toda a vida o desconforto e amou os que sabiam se conciliar. Ao seu modo ele era assim. Assentia seus anseios como modo de se justificar.
Em sua triste infância, sofreu por querer concertar sinfonias em desconserto. Nas brigas alheias, via o orgulho a se deleitar e a vingança a se proliferar. Chorou em descanso os primeiros anos para, quando adulto, melhor se formar.
Nas vias da maturidade conheceu Tereza.
Menina, ilustre na juventude, bela e peculiar. Carregava sob os olhos as horas que passavam somente à noite devagar. Seu maior medo sempre fora não amar.
Conheceram-se quase num desenrolar. Ele havia saído mais cedo para uma visita familiar, enquanto ela se distanciava, mais uma vez, de alguma obrigação.
Na entrada do Café Royal, os olhos tranquilos e os manifestados se cruazaram num momento magistral, para ele, que abriu a porta gentilmente.
Ela se arrependeu de estar onde estava e não o notou. Por um momento ambos pensaram em chorar.
Se conheceram minutos mais tarde, quando ela saía desolada em sua pífia compreensão, ele não. Naturalmente encorajado, se delarou pela mão num elogio e no sorriso uma verdade. Se tornou solução para um coração amargurado. Ela o aprovou.
Desfrutaram de um amor gentil durante os anos em que foram felizes.
Nos anos de alegria conjugal, ele suportou seus defeitos de forma platônica. Atraiu para si a responsabilidade de tais costumes desfeitos.
Nas diversas inaptidões, aprendeu a cozinhar, a tocar um pouco de piano, a amar seus pais e a plantar legumes. Gostos de que ela não era capaz nem de tentar. Mesmo assim ela pedia, implorava e ele fazia como se fosse ela, pelo menos era o que se pretendia.
A vida por amor se seguiu.
Nos últimos anos quiseram ter filhos, a vitalidade dos argumentos era inusitada, sem quaisquer precauções tentaram. Ela sorriu por dias indefinidos e ele também.
O dom maternal não seguiu seu curso natural. Tentavam em vão e, por isso, foram consultar um médico especializado.
Por esperança, realizaram muitos exames e constatações. A incubência de buscar os resultados seguiu ao marido, e assim ele foi. Os demasiados alardes tinham sua razão. A jovem senhora não podia ter filhos, o que, certamente, traria dores à relação.
Permaneceu, por um instante, escancarado na verdade, mas logo se arrependeu.
Chegou em casa atrasado e pouco se acomodou. Tinha nas mãos um desejo divino e nas palavras outra declaração.
Decidiu por se tornar um mártir e isso, sim, ocorreu. Se seguiram lágrimas e lágrimas, dores e mais dores, sendo o culpado um único só.
Ela optou pela separação. Abandonou seu marido, que tanto soubera lhe amar, mas de maneiras infrutíferas.
Ele apenas consentiu.

quinta-feira, 29 de abril de 2010

O caso do ponto de ônibus

Eram sete e meia da noite, a lua reinava soberana e úmida sobre o ponto principal da Rua da Alvorada.
Todos, naquela noite, pareciam depender merecidamente do transporte público. Apressados, convencidos e ouvintes aguardavam igualmente o retorno aos seu lares (casas, bares e tortas luminárias rubras).
Aproximei-me da multidão, de maneira tímida, aconchegando-me no primeiro espaço vazio, quadrado inóspito, entre crianças lambuzadas de uma sorte feliz e um homem gravatal de sorriso e bolsos insuficientes.
Meus olhos, assustados, buscaram um lugar pacífico, prontamente recíproco à minha solidão. Rodearam, rodearam e permaneceram, fincados ao despero de minhas pernas, em meio à oratória de Babel que ali se instaurara, sob, sobre e junto a mim.
Neste instante saí de mim, meu olhos finalmente localizaram o cintilar da aurora. Localizei-me prontamente ali, afastado dos múrmurios e lamúrias, em frente ao poste, paraíso concebido aos visionários.
Passado alguns segundos, meu corpo, que resolvera obedecer os planos de meus pensamentos, se despede dos transeuntes, lhes deixando a sombra, lhes deixando o gosto que sobrara de ontem, o gosto de sempre.
Fiquei. Inebriado em meu mundo de sons calados e espera. Feliz. Numa esfera singular, numa sensatez hipócrita e altamente confidencial, talhada pela imagem crua de uma mulher.
Ela se instalou assim, sem pedir-me licença e não se importando com a imagem utópica e selvagem que eu havia criado. Em minha frente, olhou-me de soslaio, erguendo seu sorriso até a ponta de meu nariz. Brincava de ser menina, bailarina, tatuagem de meu simples desejo.
De repente o sereno pousou lentamente em seu corpo. Atrevidamente, suas maçãs se avermelharam, mergulhadas no gosto lento dos perfumes vindos do céu. Fechou os olhos, sonhou seus pecados mais incolores, e deixou que a mais fina camada de água permanecesse no mais profundo de seus desejos.
Então, o menor dos pingos tocou-lhe os lábios, caminhou no implacável de sua boca. Uma fonte rara de ciúmes tomou-me por inteiro, nunca havia pensado com tamanha fúria sobre o mais cafajeste dos fenômenos naturais.
Minha decência se desmantelou, despedaçou-se em minha própria imaginação. Senti o ardido brilho dos faróis e semáforos noturnos, novamente voltei a perceber o sereno sobre o caso dos outros.
Como se reparasse minha dispersão, ela abriu-me um sorriso íntimo, ergueu dois dedos que secaram , cuidadosamente, seu lábio inferior, superior, inferior, superior. As luzes voltaram a se apagar, entramos em cena como um par, éramos duo, um corpo que aguardava a chegada do outro. Éramos desejos recíprocos misturados ao sabor insípido do destino.
Aproximei-me dela, minha respiração ditava um ritmo inadequado, um leve espasmo a rodeara surgindo de mim. Seus olhos fitaram-me, dominaram minhas dilatações, pulsando, tinha meu coração ardendo na boca e em seus lábios, vibrando.
No momento de tocá-la a face, discorrer de suas emoções, de sentir suas palpitações dominantes, um gigante em minha frente surgiu. As pessoas correram, gritaram, formando a desordenada fila. A pressa e a exatidão se amontoaram, uma orbitando a outra.
Sozinho, caminhei ao final da espera, o ônibus me aguardava junto a outros tantos. Com distinção, olhei em direção a ela, lhe deixando o gosto aprazível de hoje, de nunca.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Na espera de um beijo

Eles ali estavam. Sentados. Num banco sujo de parque central ou distrital. A natureza e suas graças também estavam. Na cena do dia, dois desejos que se admiravam, se certificavam de não estarem certos.
O momento era conceito que na prática fazia sentido. Não para ele, talvez para ela. Não distinguia os concretos brios de aprovação, para ele tudo era ela. Para ela o tudo podia ser ele.
Se esbaldava numa preguiça lenta, vergonhosa. Perdeu a voz quando quis explicar, ela ouviu e entendeu. Puxou, nos olhos dela, verdades. Ficou triste por passadas separações.
Pensou em si num passado impossível.
As mãos se perdiam num espaço achado. Tudo levava a entender o que já era passado. Um momento sem espaço determinado. Ela ainda o aguardava.
A tarde se cansava, suspirou um vento frio. Os lábios dela secaram, os dele já o estavam desde o primeiro olhar.
As nuvens fecharam o brilho de seus olhos. Sonhador, estava sônambulo àquela paisagem. Teve um breve impulso, em vão. Os olhos dela já estavam fechados.
Voltaram à vergonha inicial.
Desculpas caladas a fizeram levantar, sentiu um rubror de faces e um inegável inexplicar. Nos olhos dele um breve palpitar tardia num leve suspirar.
Deixou ela partir.
O sol se recolhia devagar e a demora o fazia lembrar de estar só outra vez.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Com destino a São Miguel

De volta à estação, começo a recordar o que seria um esboço de um tempo que acabara de passar. Detalhadamente, busco na fresca memória as certezas que ocorreram. Percorro instantes de nosso quase reencontro.
Nossa manhã se contemplaria da seguinte maneira:
Sentaríamos nos bancos à nossa direita, eu primeiro, para que não houvesse menores suspeitas, e você logo em seguida. Nos olharíamos por alguns instantes e ficaríamos a perceber a jovem brisa que adentrava da janela.
Durante quinze minutos, permaneceríamos a contemplar o silêncio que corria, deixaríamos que o tempo regredisse, que se situasse num passado dúbio e particular. Descobriríamos novas fragilidades e desencantos, como se a timidez fizesse parte de nossos trejeitos.
Sem que você notasse, meus dedos tocariam as costas de sua mão, percorreriam palpitamente os caminhos de seus dedos, bailariam na ponta de suas unhas e voltariam ao céu. Passivamente, se instalariam entre os seus dedos e se entrelaçariam na figura de uma paisagem. Retornariam, após um breve espasmo, às costas de sua mão e ali se aconchegariam.
Olhando fixamente os detalhes de nossa jornada, esperaria uma sugestão sincera sua: um filme, um livro, uma música, algo que lembrasse nossa figuração, algo que pudéssemos levar por um segundo à memória.
Faria com que meus dedos lhe fragilizassem suavemente, se declinassem num ritmo linear e casual. Logo estaria a ter a palma de sua mão na ponta de meu dedo anelar. Olharia de frente seus olhos, crente de encontrar-me num suspiro, e voltaria a concentrar-me no centro de suas emoções.
Desenharia círculos, triângulos, corações, formas abastratas e obedientes, na certeza de tocar o epicentro de nossos corpos. Você recolherias seus dedos fugidios, estremeceria à desconfiança alheia e, num respiro íntimo, baixaria os encantos de seus olhos.
Assim, teria você mais perto, poderia lhe observar entre os fios que cobriam sua seus cílios, suas orelhas, me ouviria ser um pouco mais honesto.
De volta aos dedos que se atraíam, traçaria delicadamente o percurso de seu braço, fabricaria desenhos para estampar de vez sua tez. Subiria pelos caminhos que ali surgiriam, inebriado pelo perfume inocente que penetrava, cautelosamente, o pesar de sua respiração.
Me olharia pelos cantos, restaurada e sensível, tentando compreender o que havia se passado, se a fantasia instaurada era real ou fruto de seus desejos, por ora contemplados. Travaria batalhas sobre a concepção de meu perfil, seguiria seus instintos e buscaria de todas as formas meu olhar. Coincidentemente, meus olhos estariam fechados, calados, ludibriando breves rotinas de um amor iniciado.
Você, habilmente, calaria seus gestos, deixaria que a figuração lhe tomasse a alma, supreendendo-se com os excessos do acaso. Depois, ainda com olhos fechados, sussurraria em seu ouvido frases desconexas do ocorrido na situação anterior. Falaria dos carnavais que logo passaram, das primeiras primaveras, de embaraços e desencontros.
Então, poria meus olhos em seus ombros, saciando meus lábios num ponto cru de seu corpo, um recorte de sua pele, embaraçada em vestimentas adequadas à estação. Contemplaria nossa união permanecendo em vestígios.
Bruscamente, fugiria ao enconto de meu banco, olharia para a paisagem que corria lá fora, reparando por um vidro quase límpido, e apontaria em direção ao céu, provocando o tempo sobre a possibilidade de chuva. Falaria sobre os encantos das águas, os deslizes proporcionais e proporcionados, os detalhes que transbordam pureza de um sentido, seja qual for o momento.
Você notaria meus olhos emudecidos e tentaria, em vão, consolar-me, proteger minha conduta, esquecendo-se que a nostagia faz parte de minha vontade, como uma prece que se realizara enfim. Ainda entrelaçadas, nossas mãos se estranhariam, se incomodariam com o excesso de umidade e, facilmente, se distanciariam.
Levantaríamos lentamente de nossos bancos, você primeiro para que houvesse convicção e eu logo a seguir. Caminharíamos à porta do vagão. Aguardaríamos em pé nosso último momento juntos, sem testemunhas ou cumplicidade.
Sairíamos do trem como dois desconhecidos, duas faces homogênias de uma estação só, você rumo ao norte e eu de volta à cidade.
Partiríamos de volta às nossas vidas, dois pontos distantes de uma linha condenada a se perpetuar. Recordaríamos a manhã que se encerrava e que permanecia absoluta.
Mas, mesmo assim, você não apareceu.
Creio que deve ter sido a chuva.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Um sorriso, um presente e um adeus

Ele vivia a vida tranquilamente, de maneira simpática. Possuía amigos, um lar afetuoso e humor refinado. Dedicava-se à todas as tarefas pessoais de ótimo grado.
Pela cidade, era saudado por todos, causando simpatia por onde caminhava. em poucos anos, se tornara sorridente por opção do povo. Assim funcionava a democracia pessoal que perdoa a inveja, como perdoa a soberba.
Numa madrugada de terça-feira, porém, ocorreu-lhe algo inédito em seus anos de simpatia. Caminhando de um lado para outro até se decidir por ir à cozinha, buscava entender os sintomas de insônia que tanto lhe atormentavam. Percepções banais aos meros mortais.
Ele parou em frente a geladeira, estátua estável e perplexa. Com as mãos em vias de alcançar seu interior, deparou-se com sua imagem refletida no eletrodoméstico. Ostentou, como se aquela imagem lhe pudesse trazer os anos, as vontades e seus planos.
Os pensamentos se perderam num vaguear sincero até pousar na utilidade de toda uma vida. Reparou na funcionalidade da vida como um todo e seu fim.
Com olhos de sensibilidade, voltou seus movimentos à pia e decidiu por um copo de água natural, para que o gosto do tempo não se peredesse em outro sabor.
De volta ao quarto suspirou no silêncio que pairava, na respiração de sua esposa, no afago das almofadas espalhadas pelo chão. Para não atrapalhar o cenário disposto retirou-se devagar.
Já na sala, começou a memorar seus feitos e efeitos. Percorreu fatos de sua trajetória que não provocaram um sorriso sequer, verificou a alegria alheia, sem conseguir expressar tal artifício de modo natural.
Entristeceu-se.
Caminhou devagar até a estante e abriu com ironia um de seus segredos, voltando a fumar para praticar seu puro egoísmo. Ficou e só recolheu as cinzas quando o dia amanheceu.
Os dias seguiram normalmente, apesar de uma indelicada vontade de ficar sozinho. Uma vontade ainda comportada em momentos adequados. Nada perceptível ao cunho popular.
Duas semanas, vagarosamente, passaram e chegaram ao dia do aniversário de seu primo.
Amigos desde o sempre, obtiam cumplicidade nos dias de festa. Nessas dastas, ele sempre se apresentava com exuberante elegância e humor cerebral. Dessa vez preferiu camiseta branca e vinho tinto. Com estranho sorriso, entregou o presente ao aniversariante e se retirou.
Não alegou desculpas porque não fora indagado.
As comemorações surgiam enfáticas e gordas. Bodas, batizados, casamentos e debutantes. Todos se embriagando em gostos populares. Sua presença era tão almejada quanto infeliz. Com vestimentas e opções alcoólicas comuns, repetia o primeiro ritual de abandono. Em silêncio, um sorriso, um presente e um adeus.
Apesar das muitas preocupações da esposa, continuou firme em sua conduta. Sua escolha egoísta tendia ao sucesso. Os dias sucediam cada vez mais sóbrios. Sua solidão dava-lhe uma feição mais comedida, mais transparente, mais enjoada. Longe dos sorriso não tinha afeição.
Inesperadamente, as visitas se tornaram mais frequentes. Eram tardes recheadas de palavras jogadas ao vento, fabricadas para cativar, obedecer ou sensibilizar. As paisagens começavam a perder a cor nas paredes de seu exílio natural.
Certa vez, quando um velho amigo apareceu, sem sequer avisá-lo, foi econômico. Por entre as barras do portão que lhe cortavam o sorriso, entregou um de seus livros favoritos embrulhado em palavras de despedida. Mesmo aceitando o presente, o velho amigo nunca o perdoou.
Por interesses mútuos, outros amigos começaram a lhe fazer visitas. A cada visita um destino. Às vezes silêncio, mas sempre um sorriso, um presente e um adeus.
Atitudes mais drásticas deveriam, então, ser tomadas.
Num domingo de chuva intensa, convocou uma reunião em sua casa. Dos que sobraram, vieram amigos, colegas, familiares e interessados, se acomodando em todos os cantos da enorme sala.
Com passos fatigados, declarou que doaria todos os seus pertences, não ousava viver na capacidade material. Enquanto os outros retiravam profunfos desejos da casa, repetiu minuciosamente os movimentos da primeira elucidação. Suspirou no silêncio que pairava, e para não atrapalhar o cenário disposto retirou-se devagar.
Em pé, em frente à casa, permanceu durante horas até que o vazio preenchesse todos os caminhos. No meio não havia nada além dos corpos dele e de sua esposa.
Com lágrimas prendidas em seus olhos, ela o indagou sobre o propósito daquilo tudo.
Sem emitir nada mais que um silêncio, entregou-lhe as chaves da casa, o anel de noivado e um beijo insuficiente.
Ofereceu aos céus seu corpo como presente à solidão. Deu dois passos e padeceu.
Um sorriso percorreu o meio-fio.

terça-feira, 20 de abril de 2010

O homem em seu lugar com sua dor

O lugar era exuberante, pelo menos parecia ser na exatidão do olhar.
Sua perna direita se esticava perfeitamente ao comprimento do espaço, sua perna esquerda, levemente dobrada, se articulava por espasmos, movendo-se lentamente de acordo com o peso que carregava em seu colo, normalmente livros ou revistas.
Suas costas permaneciam coladas à parede, paralelamente verticais à coluna. Funcionaria com perfeição arquitetônica não fosse a leve dor na parte inferior direita, encostada ao rodapé. Nada suficiente e que o fizesse desistir de sua preferida posição.
Os dias descorriam satisfeitos naquele mês de férias. Os raios de sol tocavam-lhe o peito para depois escorrerem até seus dedos e depois se descobrirem na imensidão do chão e correrem, correrem até se perderem na escuridão. Todos os dias transcorriam enamorados, o homem e o sol em perfeita sintonia de horários e ocupações.
Nesses tempos de sossego desacostumado, por vezes choveu. Chovia uma chuva fina, pouca, refrescante, o bastante para molhar o recinto, revigorado mais tarde por seu companheiro astral. Nesses dias não retornava ao lugar, mas para o dia seguinte tal escolha seria vital.
Na despedida da primavera demorou-se um pouco mais, resistiu na implicação da escuridão para sentir mais de perto o aroma que inebriava das flores e toda a sinfonia da constante ausência de sons. Mais tarde um leve resfriado tomou-lhe o peito.
Os meses se passaram em equilibradas estações enquanto ele trabalhava, se ocupava e se esquecia. Por diversas vezes passou em frente ao lugar concebido ao seu descanso sem conseguir o tempo necessário de volta ao lar.
Continuou em seu destino até novamente chegarem as férias. Bendito seja o sétimo dia em trinta. Bendito seja o cansaço para que haja o descanso.
Na manhã do novo primeiro dia logo se dirigiu ao lugar, mal abriu os olhos seu pensamento implorava pela busca do horizonte. Permaneceria horas a vagar no vazio dos dias, passeando num mundo sem problemas e sem soluções. A doce vida.
Antes que sua visão pudesse captar o infito, sentiu as flores que exalavam um cheiro forte de saudade que penetrava pelos poros de seu rosto dando-lhe pequenos beijos. Sorriu de forma permanente e se acomodou. Virou-se um pouco, mexeu-se pra lá, remexeu-se pra cá, mas fatalmente carecia de algo.
Nas bandas esquerdas dores novas e suspiros de desconforto. Nas bordas direitas, no peito do rodapé, lhe faltava o incômodo da leve dor passada. Nos altos caminhos da coluna novas dores concorriam aos extremos.
Com paciência inusitada começou a chorar em frente ao seu Éden interior. Uma forte dor de cabeça começou a lhe tomar o raciocínio, seus pensamentos se perdiam numa lembrança saudosista de um lugar que o tempo levou. Uma substância amarga, carregada de saudade subiu-lhe a boca.
Em pé, permaneceu em seu espaço, contemplando em fotografias mentais um tempo em que o infortúnio maior era uma leve dor. Tempo em que a dor e seu corpo se respeitavam mutuamente.
Em demasiada contemplação sentiu-se só num lugar vazio. Se recolheu mais cedo à escuridão para esquecer das novas dores que o tempo trouxe.

sábado, 17 de abril de 2010

As Moedas

A escolha era dificílima, embora seu efeito ser basicamente o mesmo independente à opção. Distante no tempo, ficou admirando as moedas em sua escrivaninha sem conseguir, de fato, obter a escolha perpétua e sensata.
Juntas, mais a direita do empoeirado objeto, as moedas de dez, cinco e um centavos, esquecidas pelo tempo e desvalorizadas pela economia. Essas moedas, há muito, habitavam a superfície destra da madeira sexagenária.
Na palma da mão esquerda, sua segunda opção: uma novíssima moeda de uma real, força de nossa administração e que, certamente, padecerá com os anos. Muito entusiasmo e pouca função, seu brilho transmitia uma sensação de encanto, tal qual uma igreja do nosso século.
A decisão entre as moedas e a moeda simbolizava, em um dos lados, sua liberdade egoísta, não mais veria aquelas velhas de baixa fisionomia. Se livraria delas num ato, livre de qualquer culpa ou modéstia.
Do lado singular, a praticidade e suas implicações cotidianas. Se optasse pela moeda única todos os dias (considerando que haja uma moeda de um real disponível a cada dia) segundos, minutos, horas seriam economizados. Os tempos terríveis da primeira contagem e sua repetição na mão de outros, que se sucedem nas grandes cidades, seriam trocados por gestos de obrigação.
O fato ruim desse passeio utópico seria ver seu pesadelo cada vez mais próximo. Havendo troco para a única moeda, novas velhas moedas seriam entregues, seus bolsos se tilintariam a cada instante e a tomada econômica na margem direita da mesa iria logo se expandir. Os inimigos são capazes de se imaginar até em seus bolsos.
Tentando obter sucesso, resolveu mudar a pespectiva sobre a trama. Imaginou o momento da entrega das solidárias miudezas. Ao certo, não sabia se conseguiria chegar ao seu destino com as moedas no bolso, tinha fama de perdedor e péssimos hábitos maltrapilhos.
Pensou também nos momentos que precisou de troco, em quantos já vira reclamando em estacionamentos públicos, festas beneficentes ou liquidições chinesas. Sua opção seria adorável, ajudaria aos que necessitavam de poucas moedas.
Como se a pobreza carregasse em si outra pobreza, pensou nos que, ao invés de pedir troco, pediam trocados. Amargurados miseráveis que lutam por sol, calor e uma boa noite de sonhos.
Voltando à cena da entrega do dinheiro, pensou que quem recebesse o montante de pequenas moedas poderia ter uma impressão equivocada de sua condição social. O receptor olharia com desdém as corrompidas economias (por mais que precisasse delas) e logo tal sentimento se dirigiria a ele. Infeliz primeira impressão que julga e olha simultaneamente.
O desdém pelas moedas o fez lembrar de um antigo amigo seu. Em tempos mais modernos o amigo lhe dissera que não suportava carregar moedas e destilava toda a sua fúria aos que praticavam tal exercício com maestria e sutileza.
As moedas, dizia o amigo, são os fantasmas da economia, os restos jogados aos pobres, literalmente pobres, seres humanos. Pagar com moedas significava a pobreza de espírito de quem efetua e a implacável miséria de quem recebe.
Sabia que não podia negar o absurdo da conduta do amigo e considerava que não possuía moedas suficientes para se tornar um bom cristão. Novamente se deparou com o contato social em suas mãos. Sua simples opção de gasto se tornara numa apropriação de caráter.
Olhou novamente para as moedas e decidiu por ficar em casa. Não mais se preocuparia com a economia, não àquela hora. Ficaria só com a razão.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Bravo!

De súbito, uma linda mulher atravessa o salão. Com largos passos e corretos, caminha desalinhando o horizonte com sua atitude Channel e lábios contornados. Seus olhos verdes memorizam o passado enquanto sua boca evoca o presente. Chama o ator por Otávio, levanta sutilmente seus calcanhares para cravar-lhe um beijo no rosto e uma facada no peito. Sussura ponderadamente suas considerações e gira a faca até fazer pingar seu prejuízo.
Dá as costas ao seu ator tão querido, preferido em outrora, e atravessa de volta o abafado salão. Dá adeus a um jovem adolescente, perdido no meio de uma festa chata, que a admira de longe, apaixonado. Se retira, deixando sua presença no coração de um indagável e devoto menino.
Um silêncio surge após a queda. Uma visão, um cenário, um momento pesado e febril. Nem o tempo ousera interferir na capacidade vaidosa do som.
Até que um membro da sociedade, não se sabe ao certo de qual tratamos especificamente, inicia uma salva de palmas. A perplexidade toma o público, todos, menos um, o morto, se comovem com brilhante atuação.
De longe se ouve um burburinho de que a atriz fora convidada por uma grande produtora que se instalara na cidade, alguns concordam, outros investem. Algo quase planejado.
Morre ao som de "Bravo!", o verdadeiro ator, na melhor de suas representações.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

O mini-conto da fada madrinha dos dentes

Sábado à noite, churrasco na casa do Barbosa. Grande confraternização semanal, em que um grupo de homens semi-adolescentes se reúnem para arrumar motivos para beber e se arrepender.
Por volta das três da manhã, todos os nossos amigos sérios já haviam se retirado, inclusive minha adorável esposa, que há muito se cansara dessa monótona maratona de conversas, que eu considerava como um hobby, e elegantemente sempre pega meu carro, me deseja boa noite e volta pra casa.
Depois de algumas, dezenas, milhares de cervejas (essa conta varia e depende de quando a contagem se iniciou) e longas versões de Chico Buarque e Caetano Veloso, me perguntaram algo curioso.
Me perguntaram se, quando criança, eu havia deixado meu primeiro dente que caiu embaixo do travesseiro, aguardando a recompensa de uma dita fada madrinha.
Quando respondi que sim, me questionaram sobre o que havia ocorrido (no auge desta lenda ou folclore, alguns pais colocavam dinheiro sob o travesseiro e diziam que "isso" era obra da fada madrinha dos dentes).
Respondi que havia uma réplica de meu dente sob o travesseiro, o que era lastimável. Era que ela, a fada madrinha, havia me roubado o original.
Rimos, brindamos e bebemos.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Sinfonia ou Homenagem ao Vizinho

Às 8:40 o dia começa. Martelo martelo, cai o bloco. Um olho se abre, um outro se adapta. Martelo martelo, cai o bloco. O som se propaga, o tom em fúria. Martelo martelo, cai o bloco. Suspira suspira, começa o dia. Martelo martelo, cai o bloco. Bom-dia, que dia, tomara inócuo.
Às 9:05 segue a manhã. Furando furando, se abre a parede. Um caminho se abre, um outro se solta. Furando furando, se abre a parede. Do fim ao fundo, do juízo à dor. Furando furando, se abre a parede. Não há motivos, não há certezas. Furando furando, se abre a parede. Espaço vazio, um corpo sem sede.
Às 9:50 a manhã é quem corre. Serrote serrote, corta a tábua. Suspiros delírios, profundo atraso. Serrote serrote, corta a tábua. Correndo correndo, o tempo passeia. Serrote serrote, corta a tábua. Espelhos contínuos, semana à semana. Serrote serrote, corta a tábua. Vizinho cretino, sem mágoa sem mágoa.
Às 10:18 a rua é o mundo. Buzina buzina, quem anda não para. Caminhos corretos, o mais razoável. Buzina buzina, quem anda não para. Primeiro o burro, depois a máquina. Buzina buzina, quem anda não para. Insolúvel destino, maltrata quem passa. Buzina buzina, quem anda não para. Blasfêmias ao céu, desgraça sem graça.
...

Mas, para que nos alongarmos em sortimento, se preferimos o silêncio?