Quando sabe-se menos.

A partir do momento em que a significação surge nas palavras de um texto, na exata precisão de ideia, nasce a sabedoria. A leitura, a elucidação e a compreensão provocam a emancipação da sabedoria alheia. Trata-se então da sabedoria íntima que se subtrai, uma concepção pessoal que acaba de ser preenchida por outro, uma possibilidade de vislumbre inédito que se anula, desaparece. Então, quando isso ocorre, estamos a saber menos do que o nosso egoísmo idealizou.



quinta-feira, 29 de abril de 2010

O caso do ponto de ônibus

Eram sete e meia da noite, a lua reinava soberana e úmida sobre o ponto principal da Rua da Alvorada.
Todos, naquela noite, pareciam depender merecidamente do transporte público. Apressados, convencidos e ouvintes aguardavam igualmente o retorno aos seu lares (casas, bares e tortas luminárias rubras).
Aproximei-me da multidão, de maneira tímida, aconchegando-me no primeiro espaço vazio, quadrado inóspito, entre crianças lambuzadas de uma sorte feliz e um homem gravatal de sorriso e bolsos insuficientes.
Meus olhos, assustados, buscaram um lugar pacífico, prontamente recíproco à minha solidão. Rodearam, rodearam e permaneceram, fincados ao despero de minhas pernas, em meio à oratória de Babel que ali se instaurara, sob, sobre e junto a mim.
Neste instante saí de mim, meu olhos finalmente localizaram o cintilar da aurora. Localizei-me prontamente ali, afastado dos múrmurios e lamúrias, em frente ao poste, paraíso concebido aos visionários.
Passado alguns segundos, meu corpo, que resolvera obedecer os planos de meus pensamentos, se despede dos transeuntes, lhes deixando a sombra, lhes deixando o gosto que sobrara de ontem, o gosto de sempre.
Fiquei. Inebriado em meu mundo de sons calados e espera. Feliz. Numa esfera singular, numa sensatez hipócrita e altamente confidencial, talhada pela imagem crua de uma mulher.
Ela se instalou assim, sem pedir-me licença e não se importando com a imagem utópica e selvagem que eu havia criado. Em minha frente, olhou-me de soslaio, erguendo seu sorriso até a ponta de meu nariz. Brincava de ser menina, bailarina, tatuagem de meu simples desejo.
De repente o sereno pousou lentamente em seu corpo. Atrevidamente, suas maçãs se avermelharam, mergulhadas no gosto lento dos perfumes vindos do céu. Fechou os olhos, sonhou seus pecados mais incolores, e deixou que a mais fina camada de água permanecesse no mais profundo de seus desejos.
Então, o menor dos pingos tocou-lhe os lábios, caminhou no implacável de sua boca. Uma fonte rara de ciúmes tomou-me por inteiro, nunca havia pensado com tamanha fúria sobre o mais cafajeste dos fenômenos naturais.
Minha decência se desmantelou, despedaçou-se em minha própria imaginação. Senti o ardido brilho dos faróis e semáforos noturnos, novamente voltei a perceber o sereno sobre o caso dos outros.
Como se reparasse minha dispersão, ela abriu-me um sorriso íntimo, ergueu dois dedos que secaram , cuidadosamente, seu lábio inferior, superior, inferior, superior. As luzes voltaram a se apagar, entramos em cena como um par, éramos duo, um corpo que aguardava a chegada do outro. Éramos desejos recíprocos misturados ao sabor insípido do destino.
Aproximei-me dela, minha respiração ditava um ritmo inadequado, um leve espasmo a rodeara surgindo de mim. Seus olhos fitaram-me, dominaram minhas dilatações, pulsando, tinha meu coração ardendo na boca e em seus lábios, vibrando.
No momento de tocá-la a face, discorrer de suas emoções, de sentir suas palpitações dominantes, um gigante em minha frente surgiu. As pessoas correram, gritaram, formando a desordenada fila. A pressa e a exatidão se amontoaram, uma orbitando a outra.
Sozinho, caminhei ao final da espera, o ônibus me aguardava junto a outros tantos. Com distinção, olhei em direção a ela, lhe deixando o gosto aprazível de hoje, de nunca.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Na espera de um beijo

Eles ali estavam. Sentados. Num banco sujo de parque central ou distrital. A natureza e suas graças também estavam. Na cena do dia, dois desejos que se admiravam, se certificavam de não estarem certos.
O momento era conceito que na prática fazia sentido. Não para ele, talvez para ela. Não distinguia os concretos brios de aprovação, para ele tudo era ela. Para ela o tudo podia ser ele.
Se esbaldava numa preguiça lenta, vergonhosa. Perdeu a voz quando quis explicar, ela ouviu e entendeu. Puxou, nos olhos dela, verdades. Ficou triste por passadas separações.
Pensou em si num passado impossível.
As mãos se perdiam num espaço achado. Tudo levava a entender o que já era passado. Um momento sem espaço determinado. Ela ainda o aguardava.
A tarde se cansava, suspirou um vento frio. Os lábios dela secaram, os dele já o estavam desde o primeiro olhar.
As nuvens fecharam o brilho de seus olhos. Sonhador, estava sônambulo àquela paisagem. Teve um breve impulso, em vão. Os olhos dela já estavam fechados.
Voltaram à vergonha inicial.
Desculpas caladas a fizeram levantar, sentiu um rubror de faces e um inegável inexplicar. Nos olhos dele um breve palpitar tardia num leve suspirar.
Deixou ela partir.
O sol se recolhia devagar e a demora o fazia lembrar de estar só outra vez.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Com destino a São Miguel

De volta à estação, começo a recordar o que seria um esboço de um tempo que acabara de passar. Detalhadamente, busco na fresca memória as certezas que ocorreram. Percorro instantes de nosso quase reencontro.
Nossa manhã se contemplaria da seguinte maneira:
Sentaríamos nos bancos à nossa direita, eu primeiro, para que não houvesse menores suspeitas, e você logo em seguida. Nos olharíamos por alguns instantes e ficaríamos a perceber a jovem brisa que adentrava da janela.
Durante quinze minutos, permaneceríamos a contemplar o silêncio que corria, deixaríamos que o tempo regredisse, que se situasse num passado dúbio e particular. Descobriríamos novas fragilidades e desencantos, como se a timidez fizesse parte de nossos trejeitos.
Sem que você notasse, meus dedos tocariam as costas de sua mão, percorreriam palpitamente os caminhos de seus dedos, bailariam na ponta de suas unhas e voltariam ao céu. Passivamente, se instalariam entre os seus dedos e se entrelaçariam na figura de uma paisagem. Retornariam, após um breve espasmo, às costas de sua mão e ali se aconchegariam.
Olhando fixamente os detalhes de nossa jornada, esperaria uma sugestão sincera sua: um filme, um livro, uma música, algo que lembrasse nossa figuração, algo que pudéssemos levar por um segundo à memória.
Faria com que meus dedos lhe fragilizassem suavemente, se declinassem num ritmo linear e casual. Logo estaria a ter a palma de sua mão na ponta de meu dedo anelar. Olharia de frente seus olhos, crente de encontrar-me num suspiro, e voltaria a concentrar-me no centro de suas emoções.
Desenharia círculos, triângulos, corações, formas abastratas e obedientes, na certeza de tocar o epicentro de nossos corpos. Você recolherias seus dedos fugidios, estremeceria à desconfiança alheia e, num respiro íntimo, baixaria os encantos de seus olhos.
Assim, teria você mais perto, poderia lhe observar entre os fios que cobriam sua seus cílios, suas orelhas, me ouviria ser um pouco mais honesto.
De volta aos dedos que se atraíam, traçaria delicadamente o percurso de seu braço, fabricaria desenhos para estampar de vez sua tez. Subiria pelos caminhos que ali surgiriam, inebriado pelo perfume inocente que penetrava, cautelosamente, o pesar de sua respiração.
Me olharia pelos cantos, restaurada e sensível, tentando compreender o que havia se passado, se a fantasia instaurada era real ou fruto de seus desejos, por ora contemplados. Travaria batalhas sobre a concepção de meu perfil, seguiria seus instintos e buscaria de todas as formas meu olhar. Coincidentemente, meus olhos estariam fechados, calados, ludibriando breves rotinas de um amor iniciado.
Você, habilmente, calaria seus gestos, deixaria que a figuração lhe tomasse a alma, supreendendo-se com os excessos do acaso. Depois, ainda com olhos fechados, sussurraria em seu ouvido frases desconexas do ocorrido na situação anterior. Falaria dos carnavais que logo passaram, das primeiras primaveras, de embaraços e desencontros.
Então, poria meus olhos em seus ombros, saciando meus lábios num ponto cru de seu corpo, um recorte de sua pele, embaraçada em vestimentas adequadas à estação. Contemplaria nossa união permanecendo em vestígios.
Bruscamente, fugiria ao enconto de meu banco, olharia para a paisagem que corria lá fora, reparando por um vidro quase límpido, e apontaria em direção ao céu, provocando o tempo sobre a possibilidade de chuva. Falaria sobre os encantos das águas, os deslizes proporcionais e proporcionados, os detalhes que transbordam pureza de um sentido, seja qual for o momento.
Você notaria meus olhos emudecidos e tentaria, em vão, consolar-me, proteger minha conduta, esquecendo-se que a nostagia faz parte de minha vontade, como uma prece que se realizara enfim. Ainda entrelaçadas, nossas mãos se estranhariam, se incomodariam com o excesso de umidade e, facilmente, se distanciariam.
Levantaríamos lentamente de nossos bancos, você primeiro para que houvesse convicção e eu logo a seguir. Caminharíamos à porta do vagão. Aguardaríamos em pé nosso último momento juntos, sem testemunhas ou cumplicidade.
Sairíamos do trem como dois desconhecidos, duas faces homogênias de uma estação só, você rumo ao norte e eu de volta à cidade.
Partiríamos de volta às nossas vidas, dois pontos distantes de uma linha condenada a se perpetuar. Recordaríamos a manhã que se encerrava e que permanecia absoluta.
Mas, mesmo assim, você não apareceu.
Creio que deve ter sido a chuva.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Um sorriso, um presente e um adeus

Ele vivia a vida tranquilamente, de maneira simpática. Possuía amigos, um lar afetuoso e humor refinado. Dedicava-se à todas as tarefas pessoais de ótimo grado.
Pela cidade, era saudado por todos, causando simpatia por onde caminhava. em poucos anos, se tornara sorridente por opção do povo. Assim funcionava a democracia pessoal que perdoa a inveja, como perdoa a soberba.
Numa madrugada de terça-feira, porém, ocorreu-lhe algo inédito em seus anos de simpatia. Caminhando de um lado para outro até se decidir por ir à cozinha, buscava entender os sintomas de insônia que tanto lhe atormentavam. Percepções banais aos meros mortais.
Ele parou em frente a geladeira, estátua estável e perplexa. Com as mãos em vias de alcançar seu interior, deparou-se com sua imagem refletida no eletrodoméstico. Ostentou, como se aquela imagem lhe pudesse trazer os anos, as vontades e seus planos.
Os pensamentos se perderam num vaguear sincero até pousar na utilidade de toda uma vida. Reparou na funcionalidade da vida como um todo e seu fim.
Com olhos de sensibilidade, voltou seus movimentos à pia e decidiu por um copo de água natural, para que o gosto do tempo não se peredesse em outro sabor.
De volta ao quarto suspirou no silêncio que pairava, na respiração de sua esposa, no afago das almofadas espalhadas pelo chão. Para não atrapalhar o cenário disposto retirou-se devagar.
Já na sala, começou a memorar seus feitos e efeitos. Percorreu fatos de sua trajetória que não provocaram um sorriso sequer, verificou a alegria alheia, sem conseguir expressar tal artifício de modo natural.
Entristeceu-se.
Caminhou devagar até a estante e abriu com ironia um de seus segredos, voltando a fumar para praticar seu puro egoísmo. Ficou e só recolheu as cinzas quando o dia amanheceu.
Os dias seguiram normalmente, apesar de uma indelicada vontade de ficar sozinho. Uma vontade ainda comportada em momentos adequados. Nada perceptível ao cunho popular.
Duas semanas, vagarosamente, passaram e chegaram ao dia do aniversário de seu primo.
Amigos desde o sempre, obtiam cumplicidade nos dias de festa. Nessas dastas, ele sempre se apresentava com exuberante elegância e humor cerebral. Dessa vez preferiu camiseta branca e vinho tinto. Com estranho sorriso, entregou o presente ao aniversariante e se retirou.
Não alegou desculpas porque não fora indagado.
As comemorações surgiam enfáticas e gordas. Bodas, batizados, casamentos e debutantes. Todos se embriagando em gostos populares. Sua presença era tão almejada quanto infeliz. Com vestimentas e opções alcoólicas comuns, repetia o primeiro ritual de abandono. Em silêncio, um sorriso, um presente e um adeus.
Apesar das muitas preocupações da esposa, continuou firme em sua conduta. Sua escolha egoísta tendia ao sucesso. Os dias sucediam cada vez mais sóbrios. Sua solidão dava-lhe uma feição mais comedida, mais transparente, mais enjoada. Longe dos sorriso não tinha afeição.
Inesperadamente, as visitas se tornaram mais frequentes. Eram tardes recheadas de palavras jogadas ao vento, fabricadas para cativar, obedecer ou sensibilizar. As paisagens começavam a perder a cor nas paredes de seu exílio natural.
Certa vez, quando um velho amigo apareceu, sem sequer avisá-lo, foi econômico. Por entre as barras do portão que lhe cortavam o sorriso, entregou um de seus livros favoritos embrulhado em palavras de despedida. Mesmo aceitando o presente, o velho amigo nunca o perdoou.
Por interesses mútuos, outros amigos começaram a lhe fazer visitas. A cada visita um destino. Às vezes silêncio, mas sempre um sorriso, um presente e um adeus.
Atitudes mais drásticas deveriam, então, ser tomadas.
Num domingo de chuva intensa, convocou uma reunião em sua casa. Dos que sobraram, vieram amigos, colegas, familiares e interessados, se acomodando em todos os cantos da enorme sala.
Com passos fatigados, declarou que doaria todos os seus pertences, não ousava viver na capacidade material. Enquanto os outros retiravam profunfos desejos da casa, repetiu minuciosamente os movimentos da primeira elucidação. Suspirou no silêncio que pairava, e para não atrapalhar o cenário disposto retirou-se devagar.
Em pé, em frente à casa, permanceu durante horas até que o vazio preenchesse todos os caminhos. No meio não havia nada além dos corpos dele e de sua esposa.
Com lágrimas prendidas em seus olhos, ela o indagou sobre o propósito daquilo tudo.
Sem emitir nada mais que um silêncio, entregou-lhe as chaves da casa, o anel de noivado e um beijo insuficiente.
Ofereceu aos céus seu corpo como presente à solidão. Deu dois passos e padeceu.
Um sorriso percorreu o meio-fio.

terça-feira, 20 de abril de 2010

O homem em seu lugar com sua dor

O lugar era exuberante, pelo menos parecia ser na exatidão do olhar.
Sua perna direita se esticava perfeitamente ao comprimento do espaço, sua perna esquerda, levemente dobrada, se articulava por espasmos, movendo-se lentamente de acordo com o peso que carregava em seu colo, normalmente livros ou revistas.
Suas costas permaneciam coladas à parede, paralelamente verticais à coluna. Funcionaria com perfeição arquitetônica não fosse a leve dor na parte inferior direita, encostada ao rodapé. Nada suficiente e que o fizesse desistir de sua preferida posição.
Os dias descorriam satisfeitos naquele mês de férias. Os raios de sol tocavam-lhe o peito para depois escorrerem até seus dedos e depois se descobrirem na imensidão do chão e correrem, correrem até se perderem na escuridão. Todos os dias transcorriam enamorados, o homem e o sol em perfeita sintonia de horários e ocupações.
Nesses tempos de sossego desacostumado, por vezes choveu. Chovia uma chuva fina, pouca, refrescante, o bastante para molhar o recinto, revigorado mais tarde por seu companheiro astral. Nesses dias não retornava ao lugar, mas para o dia seguinte tal escolha seria vital.
Na despedida da primavera demorou-se um pouco mais, resistiu na implicação da escuridão para sentir mais de perto o aroma que inebriava das flores e toda a sinfonia da constante ausência de sons. Mais tarde um leve resfriado tomou-lhe o peito.
Os meses se passaram em equilibradas estações enquanto ele trabalhava, se ocupava e se esquecia. Por diversas vezes passou em frente ao lugar concebido ao seu descanso sem conseguir o tempo necessário de volta ao lar.
Continuou em seu destino até novamente chegarem as férias. Bendito seja o sétimo dia em trinta. Bendito seja o cansaço para que haja o descanso.
Na manhã do novo primeiro dia logo se dirigiu ao lugar, mal abriu os olhos seu pensamento implorava pela busca do horizonte. Permaneceria horas a vagar no vazio dos dias, passeando num mundo sem problemas e sem soluções. A doce vida.
Antes que sua visão pudesse captar o infito, sentiu as flores que exalavam um cheiro forte de saudade que penetrava pelos poros de seu rosto dando-lhe pequenos beijos. Sorriu de forma permanente e se acomodou. Virou-se um pouco, mexeu-se pra lá, remexeu-se pra cá, mas fatalmente carecia de algo.
Nas bandas esquerdas dores novas e suspiros de desconforto. Nas bordas direitas, no peito do rodapé, lhe faltava o incômodo da leve dor passada. Nos altos caminhos da coluna novas dores concorriam aos extremos.
Com paciência inusitada começou a chorar em frente ao seu Éden interior. Uma forte dor de cabeça começou a lhe tomar o raciocínio, seus pensamentos se perdiam numa lembrança saudosista de um lugar que o tempo levou. Uma substância amarga, carregada de saudade subiu-lhe a boca.
Em pé, permaneceu em seu espaço, contemplando em fotografias mentais um tempo em que o infortúnio maior era uma leve dor. Tempo em que a dor e seu corpo se respeitavam mutuamente.
Em demasiada contemplação sentiu-se só num lugar vazio. Se recolheu mais cedo à escuridão para esquecer das novas dores que o tempo trouxe.

sábado, 17 de abril de 2010

As Moedas

A escolha era dificílima, embora seu efeito ser basicamente o mesmo independente à opção. Distante no tempo, ficou admirando as moedas em sua escrivaninha sem conseguir, de fato, obter a escolha perpétua e sensata.
Juntas, mais a direita do empoeirado objeto, as moedas de dez, cinco e um centavos, esquecidas pelo tempo e desvalorizadas pela economia. Essas moedas, há muito, habitavam a superfície destra da madeira sexagenária.
Na palma da mão esquerda, sua segunda opção: uma novíssima moeda de uma real, força de nossa administração e que, certamente, padecerá com os anos. Muito entusiasmo e pouca função, seu brilho transmitia uma sensação de encanto, tal qual uma igreja do nosso século.
A decisão entre as moedas e a moeda simbolizava, em um dos lados, sua liberdade egoísta, não mais veria aquelas velhas de baixa fisionomia. Se livraria delas num ato, livre de qualquer culpa ou modéstia.
Do lado singular, a praticidade e suas implicações cotidianas. Se optasse pela moeda única todos os dias (considerando que haja uma moeda de um real disponível a cada dia) segundos, minutos, horas seriam economizados. Os tempos terríveis da primeira contagem e sua repetição na mão de outros, que se sucedem nas grandes cidades, seriam trocados por gestos de obrigação.
O fato ruim desse passeio utópico seria ver seu pesadelo cada vez mais próximo. Havendo troco para a única moeda, novas velhas moedas seriam entregues, seus bolsos se tilintariam a cada instante e a tomada econômica na margem direita da mesa iria logo se expandir. Os inimigos são capazes de se imaginar até em seus bolsos.
Tentando obter sucesso, resolveu mudar a pespectiva sobre a trama. Imaginou o momento da entrega das solidárias miudezas. Ao certo, não sabia se conseguiria chegar ao seu destino com as moedas no bolso, tinha fama de perdedor e péssimos hábitos maltrapilhos.
Pensou também nos momentos que precisou de troco, em quantos já vira reclamando em estacionamentos públicos, festas beneficentes ou liquidições chinesas. Sua opção seria adorável, ajudaria aos que necessitavam de poucas moedas.
Como se a pobreza carregasse em si outra pobreza, pensou nos que, ao invés de pedir troco, pediam trocados. Amargurados miseráveis que lutam por sol, calor e uma boa noite de sonhos.
Voltando à cena da entrega do dinheiro, pensou que quem recebesse o montante de pequenas moedas poderia ter uma impressão equivocada de sua condição social. O receptor olharia com desdém as corrompidas economias (por mais que precisasse delas) e logo tal sentimento se dirigiria a ele. Infeliz primeira impressão que julga e olha simultaneamente.
O desdém pelas moedas o fez lembrar de um antigo amigo seu. Em tempos mais modernos o amigo lhe dissera que não suportava carregar moedas e destilava toda a sua fúria aos que praticavam tal exercício com maestria e sutileza.
As moedas, dizia o amigo, são os fantasmas da economia, os restos jogados aos pobres, literalmente pobres, seres humanos. Pagar com moedas significava a pobreza de espírito de quem efetua e a implacável miséria de quem recebe.
Sabia que não podia negar o absurdo da conduta do amigo e considerava que não possuía moedas suficientes para se tornar um bom cristão. Novamente se deparou com o contato social em suas mãos. Sua simples opção de gasto se tornara numa apropriação de caráter.
Olhou novamente para as moedas e decidiu por ficar em casa. Não mais se preocuparia com a economia, não àquela hora. Ficaria só com a razão.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Bravo!

De súbito, uma linda mulher atravessa o salão. Com largos passos e corretos, caminha desalinhando o horizonte com sua atitude Channel e lábios contornados. Seus olhos verdes memorizam o passado enquanto sua boca evoca o presente. Chama o ator por Otávio, levanta sutilmente seus calcanhares para cravar-lhe um beijo no rosto e uma facada no peito. Sussura ponderadamente suas considerações e gira a faca até fazer pingar seu prejuízo.
Dá as costas ao seu ator tão querido, preferido em outrora, e atravessa de volta o abafado salão. Dá adeus a um jovem adolescente, perdido no meio de uma festa chata, que a admira de longe, apaixonado. Se retira, deixando sua presença no coração de um indagável e devoto menino.
Um silêncio surge após a queda. Uma visão, um cenário, um momento pesado e febril. Nem o tempo ousera interferir na capacidade vaidosa do som.
Até que um membro da sociedade, não se sabe ao certo de qual tratamos especificamente, inicia uma salva de palmas. A perplexidade toma o público, todos, menos um, o morto, se comovem com brilhante atuação.
De longe se ouve um burburinho de que a atriz fora convidada por uma grande produtora que se instalara na cidade, alguns concordam, outros investem. Algo quase planejado.
Morre ao som de "Bravo!", o verdadeiro ator, na melhor de suas representações.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

O mini-conto da fada madrinha dos dentes

Sábado à noite, churrasco na casa do Barbosa. Grande confraternização semanal, em que um grupo de homens semi-adolescentes se reúnem para arrumar motivos para beber e se arrepender.
Por volta das três da manhã, todos os nossos amigos sérios já haviam se retirado, inclusive minha adorável esposa, que há muito se cansara dessa monótona maratona de conversas, que eu considerava como um hobby, e elegantemente sempre pega meu carro, me deseja boa noite e volta pra casa.
Depois de algumas, dezenas, milhares de cervejas (essa conta varia e depende de quando a contagem se iniciou) e longas versões de Chico Buarque e Caetano Veloso, me perguntaram algo curioso.
Me perguntaram se, quando criança, eu havia deixado meu primeiro dente que caiu embaixo do travesseiro, aguardando a recompensa de uma dita fada madrinha.
Quando respondi que sim, me questionaram sobre o que havia ocorrido (no auge desta lenda ou folclore, alguns pais colocavam dinheiro sob o travesseiro e diziam que "isso" era obra da fada madrinha dos dentes).
Respondi que havia uma réplica de meu dente sob o travesseiro, o que era lastimável. Era que ela, a fada madrinha, havia me roubado o original.
Rimos, brindamos e bebemos.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Sinfonia ou Homenagem ao Vizinho

Às 8:40 o dia começa. Martelo martelo, cai o bloco. Um olho se abre, um outro se adapta. Martelo martelo, cai o bloco. O som se propaga, o tom em fúria. Martelo martelo, cai o bloco. Suspira suspira, começa o dia. Martelo martelo, cai o bloco. Bom-dia, que dia, tomara inócuo.
Às 9:05 segue a manhã. Furando furando, se abre a parede. Um caminho se abre, um outro se solta. Furando furando, se abre a parede. Do fim ao fundo, do juízo à dor. Furando furando, se abre a parede. Não há motivos, não há certezas. Furando furando, se abre a parede. Espaço vazio, um corpo sem sede.
Às 9:50 a manhã é quem corre. Serrote serrote, corta a tábua. Suspiros delírios, profundo atraso. Serrote serrote, corta a tábua. Correndo correndo, o tempo passeia. Serrote serrote, corta a tábua. Espelhos contínuos, semana à semana. Serrote serrote, corta a tábua. Vizinho cretino, sem mágoa sem mágoa.
Às 10:18 a rua é o mundo. Buzina buzina, quem anda não para. Caminhos corretos, o mais razoável. Buzina buzina, quem anda não para. Primeiro o burro, depois a máquina. Buzina buzina, quem anda não para. Insolúvel destino, maltrata quem passa. Buzina buzina, quem anda não para. Blasfêmias ao céu, desgraça sem graça.
...

Mas, para que nos alongarmos em sortimento, se preferimos o silêncio?

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Bodas de Abandono

Celebro hoje cinquenta anos de casado, bodas douradas pela dignidade da velhice. Uma fase da vida aplicada em distinta agonia e satisfação.
Celebro a concepção de uma família perfeita, o amor de minha mulher para seus filhos e netos, para amigos e agregados. As ocupações diárias nos fizeram estacionar nosso amor nas bodas de papel.
Os presentes nos olham na sala de jantar, permanecem numa tristeza afável, percebem a velhice e o eficaz trabalho do tempo. Sorriem e contemplam a estrutura límpida da festa, uma paisagem ímpar de um retrato ou fotografia.
No momento alto da festa os convidados se exacerbam, genros e noras se embebedam, copiando a educação abençoada dada por mim aos meus filhos e que serviu como base à compreensão da sociedade em geral.
Observo diretamente a figura de minha esposa, olho atentamente suas feições e trejeitos. Seria tolo de minha parte acreditar que a beleza de meio século permanecesse, que o vislumbre do espelho se perpetuasse, que seus singelos delírios continuassem a me embriagar.
Agora, mais de perto e sem as desculpas íntimas ou preciosas ocupações, percebo suas maçãs do rosto já cansadas, amadurecidas em demasia e avermelhadas pela nostalgia alcançada.
Seus olhos não demonstram os efeitos de uma vida, também não demonstram vontade sobre o novo que se abre, apenas passeiam vagarosamente para fora dali, aguardando a chegada dos meus numa única mostra de fidelidade absoluta, a fuga desejada sobre o marasmo admirado.
Celebramos nesta data par, um amor cúmplice, um amor para o outro vindo de ninguém, um amor tomado pelo filho, pelo neto, pelo tédio e pelo vago. A construção de uma união no deslocamento gradual do amor.
Há muito que celebramos o amor do próximo, a vontade do alheio, a cruz pesada de um ciúme implícito. Murmuram, os outros, sobre a minha felicidade, a minha e a de minha mulher, mãe de outros, amiga de alguns e Eva nos autos.
Não há conclusões sob o olhar estrangeiro.
Agradeço, em pausada voz e sensibilidade, aos que compareceram, aos que muito amo e aos que nem tanto. Agradeço os que representam e celebram minha solidão escondida e que estarão, igualmente, na concepção de minhas bodas de alívio.