Quando sabe-se menos.

A partir do momento em que a significação surge nas palavras de um texto, na exata precisão de ideia, nasce a sabedoria. A leitura, a elucidação e a compreensão provocam a emancipação da sabedoria alheia. Trata-se então da sabedoria íntima que se subtrai, uma concepção pessoal que acaba de ser preenchida por outro, uma possibilidade de vislumbre inédito que se anula, desaparece. Então, quando isso ocorre, estamos a saber menos do que o nosso egoísmo idealizou.



segunda-feira, 31 de maio de 2010

Uma carta para dois amores

Dos três que acarretam essa situação, sou o mais leviano insensato. Temo um certo receio em expressar as palavras que carrego em meu peito, temo por saber que essas palavras devem acertar um outro peito e ainda outro, com sentimentos comuns, passionais e alternados.
Saibam que eu não seria capaz de demonstar, em momento algum, meu amor por você à ela e por ela à você. Os modos e maneiras são distintos, e no coração adverso há um diferente tipo de perdão.
Sei que não se deve amar dois sonhos, mais de um futuro simultâneo. Sei que a saudade pode ser esquecida ou ludibriada, caso não haja o sentimento da perda. Sem a falta não há a presença. Nada se faz.
Um amor dividido permanece somente em laços de sangue, mesmo assim, por detalhadas preferências, há o desejo de querer bem um pouco mais para um do que para outro. Nesse casos os filhos tendem a entender mais rápido do que as mães. No nosso caso, sempre soube ser filho.
Confesso que nunca tive a intenção de ter um caso ou me manter em outro, juro. Tudo fora fruto do acaso, interpretei equivocadamente suas necessidades de ficar sozinha e acompanhada. Nunca prometi o que deveria ser desejado, mas esqueci da culpa no que fora planejado.
Não espero perdão, nem daqui nem do outro lado. Também não espero ser escolhido, de nada seria justo, correto. Desejo o fardo de ficar só, sem ter de escolher entre beijos e lágrimas.
Minhas palavras são como menções de desabafo, nada mais. Devia a verdade, tanto para você como para ela. Não sei quais seriam inadequadas ou repreendidas, o certo é que prefiro o vazio das hipóteses.
As coisas ficarão bem, espero. Quando tudo se estabilizar, serão mais felizes. Tem de ser assim, senão for, não será mais por mim. De tudo que espero nada esperem de mim.
Saibam que um coração machucado possui a alma raptada e a certeza de encontrar alguém que lhe seja parte integrante.
Torço para que sejam.
Adeus.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Um sonho

Amor. Não sabe o que me aconteceu. Você está dormindo? Foi um sonho bem ruim!
Sonhei que, numa manhã parecida com amanhã, você acordava antes de mim, antes que o sol pudesse entrar pelas frestas da janela, antes que outros homens pensassem em esboçar algum bocejo.
Você levantava sem fazer ruído, me olhava do alto da cama, desmembrando a passividade de meus cuidados e obrigações. Saía na ponta de um pé, depois o outro, até chegar ao banheiro, acendia a luz e logo fechava a porta para não atrapalhar meu descanso. Lavava o rosto com as duas mãos em concha e detectava detalhes facilmente perceptíveis ao reflexo do espelho. Suspirava fundo, duas vezes para não haver dúvidas, colocava pouca pasta de dente na escova, que um dia já foi minha, e tentava esquecer detalhes recém descobertos. Abria a porta do banheiro, com mais cuidado do que havia fechado, e saía do quarto com destino a mais um dia na vida.
Já na cozinha preparava seu desjejum, tomava meio copo d’água e escolhia algo saudável na fruteira ao seu lado. Encostava na pia e refletia sobre os fortuítos cotidianos, sobre o futuro de um ano e sobre a certeza de seus sonhos. Abria a segunda gaveta à sua esquerda e tateava seu conteúdo em busca de uma faca, sabia exatamente o lugar de todos os utencílios domésticos, visualizava a colocação perfeita dos objetos da casa, do espremedor de laranjas ao ralador de queijo. Descascava, sem melhores compromissos, uma maçã verde, cortava-a em oito pedaços e guardava para mim a metade.
Colocava em fervura a água para o café e ia à dispensa em busca de pães para fazer torradas. Abria a geladeira e encontrava geléia e manteiga para o acompanhamento das torradas e de algum biscoito encontrado na dispensa por acaso.
Inebriada pelo cheiro de seu café eu acordava, anciosa para encontrar meu digníssimo amado. Lhe oferecia um carinhoso bom dia e um beijo na ponta de seus lábios. Perguntava o motivo de não ser acordada, só para ouvir você falar que não era preciso me incomodar e que o casamento representava a união de prazeres e deveres.
Logo após o café você voltava ao quarto, se vestia de forma impecável, quase cafona aos olhos dos invejosos, e perguntava, sem olhar diretamente pra mim, como estava. Voltava ao espelho e se ajeitava por alguns segundos a mais. Saía de casa distraído, sem as chaves e se esquecendo de me dizer até mais tarde, minha linda, meu anjo, meu amor.
Nas ruas, olhava os outros para entender porque tanto te olhavam. Adimirava qualquer menção à sua pessoa e se deleitava num sorriso costumeiro e amável aos que estavam instalados nas calçadas. As saias, que transitavam no piso urbano, serviam de paisagem, floridas e ensolaradas enfeitavam seu trajeto até o ponto de ônibus. Contava dez carros que passavam até a chegada do veículo público, suas coincidências sempre foram mais relevantes que sua pontualidade.
Ficava no corredor, em pé, à espera de algum sinal que lhe fizesse tomar partido, que lhe fizesse sentar próximo a uma jovem de olhos castanhos ou uma mulher confiante, semelhante ao seu semblante, mas não ao seu perfil. Enfim decidido trocava olhares com a simpática moça que chegava a se envengonhar com sua timidez praticada. Por um ou dois quilômetros se tornavam íntimos, calados e serenos como a maioria dos casais.
Descia próximo ao seu trabalho com a certeza de que este seria mais um dia para se viver e saborear, respirava a brisa que enobrecia a manhã e caminhava, desejando bom dia e bom-dia.
Trabalhava.
Perto da hora do almoço não suspirava ao ouvir os sons cançados de seus colegas nem se comovia aos trejeitos dos injuriados. Olhava para o seu relógio em contagem regressiva, do tempo.
Deparava-se com seu prato e sentia um pesado gosto de rotina na boca. Certamente não se deliciaria com meu belo picadinho, não se vangloriaria de ter em mãos um banquete dos deuses, não convidaria seus amigos de turno para o almoço de domingo, preparado com carinho por sua amada esposa. Você não faria isso. Silenciosamente iria mastigar 23 vezes cada garfada de seu laborioso almoço.
Voltaria a trabalhar, não sem antes fumar seu Gauloises escondido.
Ao fim do dia, você permanecia por mais quinze minutos (breve sensação de dever cumprido, comprido e diário). Voltava para casa rodeado por saias que não brilhavam com tanto vigor, afinal as mulheres de hoje também se sentem cansadas. Se ocupam em pensar em seus deveres, pensar em contas que seriam problemas e que os problemas seriam as contas.
Chegava em casa, sorria para mim com o que sobrou da simplicidade plástica e me beijava ao pé da orelha. Sentava no sofá, se afastava do mundo lá fora e ficava só de meias e chinelos. Dessa vez você esqueceria de cheirar minha nuca e dizer que fico linda de avental.
Jantava num silêncio provocador, observava as manchas de umidade que se aculuvam na parte esquerda da parede, e logo se retirava da mesa de jantar. Esta noite você não dançaria comigo na sala ao som de Carlos Gardel, nem tentaria me convencer de que noites como esta e todas as outras noites deveriam ser celebradas ou caluniadas, dependendo da situação de algum amigo, colega ou camarada.
Sozinho, você se dirigia prematuramente ao quarto, apagava a luz de uma vez, deixando para mim os vestígios de um único abajur.
Eu, então, choarava ao pé da cama enquanto você certamente não me ouvia, se preparava sozinho ao dia seguinte e ao seguinte e ao seguinte.
Em menos tempo que o habitual eu lhe abandonava.
Amor. Você está dormindo? Que bom!

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Se te odeio é porque te amo

O que se segue aqui não é meio de justificativa ou perdão. Fiz o que fiz porque fiz. As conclusões que se seguem a partir disso são resultados de ações que vulgarizaram um suposto isso.
Nos sentidos da vida fui extremo e ponto. Nas complicações cabisbaixas sofri, nas exaltações vigorosas amei, os restos dos dias fingi viver. Houve um tempo em que simplesmente não quis, e assim sobrou-me ódio e depois o tédio.
Para o bem e para o mal os cursos seguem. Toda prova se concretiza às custas de um exagero, mesmo que este reflita o desejo de não exagerar. Se me exaltei, lamento mais as vezes de amor que as de fúria. Todo exagero é uma forma de auto-engano, e que passamos.
Se me arrependo é pelo amor que talvez conhecemos, que traçou rotas ao inegável sentimento de fantasiar. Desejei mais e depois menos. Assim as coisas acontecem.
Aplicado num contexto familiar, brigamos com quem amamos para conhecer o perdão, a culpa e o arrependimento. Para nós o modelo não serve, verificado o laço de sangue dos envolvidos. Tiramos, disso, apenas o exemplo.
Nos devemos em diversos planos que acarretaram fatos, nos preocupamos com um certo equilíbrio, uma condição equivalente que nos faria seguir e, por vezes, aprender.
Em possíveis expectativas fracassamos.
Se lhe fiz amar, fiz sofrer. Se lhe apresentei doloridas lágrimas, elas lhe fizeram companhia. Foi de minha imagem solidão.
Agora já não sinto nem reflito nada.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Infância

Desde pequeno sofri por más interpretações de sentimento. Tentei, no fundo de meus prazeres, corresponder ao máximo de todas as expectativas credenciadas.
Me lembro que, ainda no elementar, fui coroado como melhor multiplicador da classe. Imbatível nas vezes do sete e do nove, acertador de dez entre dez perguntas, atingindo o possível do possível.
A tarde se notabilizou em festa por mim, o anfitrião e meus convidados, numa mistura de euforia e felicidade. Caminhamos de volta, radiantes e aconchegados.
Cheguei em casa carregado de elogios e até um doce ganhei da tia da cantina. Sentado na poltrona da sala, meu pai aguardava, decorando o conhecido sermão dos atrasados.
Num olhar meu sorriso se escondeu. Ouvi em pé à porta, alguns minutos de sabedoria que me fizeram calar o orgulho. Senti em primeira instância a dor da perda.
Com lágrimas nos lábios justifiquei os acasos do tempo por meus motivos e tirei do bolso o papel do doce já todo amassado. Faleci na aparência de um egoísmo. Olhou-me com olhos de rei e ordenou que eu fosse ao quarto.
Nas competições que se seguiram, errava em quando desse a hora, por volta das cinco, ciente de meu prejuízo. Voltava sozinho pra casa.
As tardes assim se seguiram, até que, enfim, perdi o gosto.
Na ausência de habilidades me tornei conhecido por ser filho dele. Por todo o caminho surgiam saudações ritmadas pela cidade e a cada saudação uma nova sensação de falta.
Ainda nos períodos infantis, numa noite de festa, ele se fez alegre e sadio. Encheu-me de elogios atrasados e comemorou todos os meus motivos e planos. Um leve desenhar sorridente surgiu em seu corado rosto. Dormi sem sonhar para não sobrecarregar o cronograma.
Na manhã seguinte, o velho ranzinza emblema. Olhou-me por cima dos óculos e exigiu silêncio. Ainda tive coragem de dizer que o amara na noite anterior, sem ressalvas. Mandou-me calado ao silêncio.
Vivo com ele até hoje.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

o espelho (ohlepse o)

os que passam por mim de repente passam sem me notar. às vezes se voltam,
˛matlov es sezev sá .raton em mes massap etneper ed mim rop massap euq so
se olham e seguem, outras vezes voltam para outras voltas, para outros
sortuo arap ˛satlov sartuo arap matlov sezev sartuo ˛meuges e mahlo es
olhares que se seguem. por vezes não olham, não voltam, mas seguem.
.meuges sam ˛matlov oãn ˛mahlo oãn sezev rop .meuges es euq seralho
fico em momentos um bom tempo a esperar, alguns estranhos ora passam e
e massap aro sohnartse snugla ˛rarepse a opmet mob mu sotnemom me ocif
param, são olhos voltados para si que não para mim, poucos desses são os
so oãs sessed socuop ˛mim arap oãn euq is arap sodatlov sohlo oãs ˛marap
que me notam e de frente nenhum.
.munhen etnerf ed e maton em euq
quanto maior narciso menor a percepção, sendo que os literalmente externos
sonretxe etnemlaretil so euq odnes ˛oãçpecrep a ronem osicran roiam otnauq
tem críticas a mim e não a si. os literalmente opostos de longe me olham,
˛mahlo em egnol ed sotsopo etnemlaretil so .is a oãn e mim a sacitìrc met
aspiram vontades e não se desejam. não aprecio olhos de ambos, olhos que
euq sohlo ˛sobma ed solho oicerpa oãn .majesed es oãn e sedatnov maripsa
não buscam somente, que se sentem escravos de meu interno de seus
sues ed onretni uem ed sovarcse metnes es euq ˛etnemos macsub oãn
externos.
.sonretxe
pra ser sincero gosto dos neutros e das crianças curiosas.
.sasoiruc saçnairc sad e sortuen sod otsog orecnis res arp
no caso dos infantis me agrada o agrado, a magia referida à mim, olhos que
euq sohlo ˛mim á adirefer aigam a ˛odarga o adarga em sitnafni sod osac on
percorrem atrás, sobre e entre minhas dimensões. pena que a vaidade venha
anhev edadiav a euq anep .seõsnemid sahnim ertne e erbos ˛sàrta merrocrep
substituir esse fantástico vislumbramento. é a idade em que se olha para ti e
e it arap alho es euq me edadi a è .otnemarbmulsiv ocitsàtnaf esse riutitsbus
não para si.
.is arap oãn
para os neutros guardo conquistas e segredos, e nem por falecimento mostro.
.ortsom otnemicelaf rop men e ˛soderges e satsiuqnoc odraug sortuen so arap
o excesso refletido em anos se estabelece em meros detalhes. me olham como
omoc malho em .sehlated sorem me ecelebatse es sona me oditelfer ossecxe o
se eu fosse parte de um retrato, como um preenchimento. me vêem antes de
ed setna meêv em .otnemihcneerp mu omoc ˛otarter mu ed etrap essof ue es
se verem. dividem seus sorrisos, olheiras e rugas. me preferem a seus
sues a mereferp em .sagur e sariehlo ˛sosirros sues medivid .merev es
melhores amigos, normalmente amigos neutros que também me preferem.
.mereferp em mèbmat euq sortuen sogima etnemlamron ˛sogima serohlem
mesmo assim sou de um, de alguns, de todos e nenhum. sou quase partido.
.oditrap esauq uos .muhnen e sodot ed ˛snugla ed ˛mu ed uos missa omsem
que rejuvenesce e envelhece só com os outros. apesar disso me mantenho.
.ohnetnam em ossid rasepa. sortuo so moc òs ecehlevne e ecsenevujer euq
em minhas reflexões a semelhança não é mera coincidência, os que me olham
mahlo em euq so ˛aicnêdicnioc arem è oãn açnahlemes a seõxelfer sahnim me
desejam ser olhados, os que se aprumam desejam ser desejados e os que me
em euq so e sodajesed res majesed mamurpa es euq so ˛sadahlo res majesed
fogem tem em si parte de uma escuridão íntima, sem caráter.
.retàrac mes ˛amitnì oãdirucse amu ed etrap is me met megof

terça-feira, 18 de maio de 2010

Digno adeus

As palavras que lhe serão ditas deveriam ter sido dispostas na noite de ontem, mas confesso que faltou à mim, coragem. Tinha de crer, primeiramente, na ausência de seus sentidos.
Nossos anos se passaram, enlaçados em mentiras, desejos e distância.
Fui parte de seu cheiro, motivo de suas blasfêmias e reencontros. Cheguei a cantarolar em sua memória e só não me portei como sua escrava porque nunca me foi permitido, nunca lhe fui digna de opção.
Mesmo nas noites em que lhe faltava um beijo estranho, um respiro de tranças novas, não havia de me procurar. Resignava-se na própria melancolia, dominando-se de saudosismo, literário ou cru.
Houve momentos de nossa história em que me rubria a face vê-lo triste. Sua quietude, assim, me transparecia confiança, me trazia um sentimento comum, um momento afável de conduta. Mas a breviedade de suas emoções logo me alertava aos motivos de meu amor.
Sem dúvida sempre soubemos de nossa vocação, nos completamos como pólos, tendo pontos em comum apenas no horizonte. Sentíamos figurações distintas de um mesmo plano, como se enxergássemos o avesso do outro reparado em versos (passagens contínuas e constantes).
As lágrimas que me enobrecem agora são delírios de agonia, são a vazão de um sentido inacabado.
Uma parte de mim se deflora, provocando distância às lembranças suas, aos desejos meus e às esperanças de outrora.
Percebo agora que seu rosto parece cansado, talvez minhas palavras estejam lhe envelhecendo, embalsamando sua pesada feição. Mesmo calado, pensativo, não faz questão de voltar os olhos à mim. Sabidamente minha linguagem nunca lhe proporcionou notável provocação.
No silêncio de nossos anos, na preocupação de tempo e espaço, buscava razões para partir, mas desde de os primeiros toques de seus dedos fui corrupta ao seu destino. Nem em gritarias triunfantes pude me afastar.
Já distante, minha juventude enfim se despede, migra para um ponto rijo de seu rosto opaco. Peço que a leve junto como um prêmio, que a castigue por determinados anos e que a enterre em seu coração junto ao meu.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Uma tarde para Yann Tiersen

Os primeiros pingos começam a cair, são lágrimas meticulosamente desenhadas que falecem furtivamente sobre as possiblidades de um plano. Uns sobre os outros deslizando em seus trajetos. Unidos, trasparecem a limpeza da alma até o subsolo.
Os transeuntes miram o céu, como se estivessem surpresos, como se fosse a primeira vez que gotas d'água os banhassem. Alguns permanecem, outros se esquivam e se apressam para o lado de lá. Poucos são os desavisados na multidão.
Os guarda-chuvas tomam suas posições e começam a florir. Um belo xadrez se abre e se contradiz em meio à atmosfera cinza que percorre a paisagem. Em seguida surge um vermelho maior, fazendo inveja à uma grafite sombrinha, desbotada e chata. Outro, listrado em vermelho e branco, ultrapassa muitos no corredores anônimo da esquina.
As águas discorrem fervorosamente em meio a pluralidade de acessórios pluviais que se espalham.
Duas botas amarelas afundam no ambiente, perto da guia despejam vida para todos os lados. Da janela é possível ver a dança pertinente dos calçados. Na plateia duas margaridas brincam suavemente no jardim, desejando a seiva feita para alimentar.
Vindo de longe uma bicicleta corta o trânsito, dois similares apaixonados se esbanjam e fazem roda em festança juvenil. São só crianças num parque de diversões. Olham para cima, para trás, para o mundo, se olham e seguem um destino a povoar.
Sob o coberto, um alguém de meia-idade profere blasfêmias insensíveis contra o tempo, uma senhora, por azar ao lado, concorda com as anedotas do rapaz, uma outra descorre, uma outra sorri e outra mais por lá também. Todas seguem sem intervir.
Um tom, de um azul bem clarinho, se desmancha ao ver as gotas que lhe caem. Solta um sorriso ainda travesso e puxa o vestido florido na altura de seu olhar. O vestido, encharcado, não demonstra a devida atenção.
Na quitanda em frente, os frutos são observados com satisfeita atenção. Sabe-se que o morango está na época, que a maça é argentina e que as alcachofras tem coração. O alho-poró é tratado com admiração por unhas cada uma de uma cor.
Do outro lado da rua um pneu, cansado e careca, clama por sua aposentadoria. Num súbito de dor e fadiga, se esfacela em seu túmulo, improvisado e molhado ao pé de um poste de luz. Não há tempo para lamentações, um outro modelo, mais novo e preciso, tomará seu lugar.
Na janela, agora, pouco se vê dos lá de fora. Rastros úmidos se formam na vertical, a vista embaçada traz um breve sentimento de angústia. Os olhos correm para ver o que há atrás da porta, na rua. Sentir de perto as cores, os cheiros, os toques e os sentidos, antes do sol voltar e se aconchegar.
Por acaso minha mãe não deixa.
Ainda chove.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Sem trair

Seria mais fácil se você fosse sem porquê. Sem a motivação de desejos que nunca serão correspondidos. Sem o sentido inapropriado de sua oratória.
Não há, para nós, um palpável destino. A manutenção de um sonho se vitaliza na impossibilidade, sua concretização pode fazê-lo, simplesmente, acabar. Sem os sonhos não somos nenhum.
Não fomos suficientemente o que esperávamos. Nunca esperávamos um ao outro, o que certamente nos distanciava. Não creditamos a esperança porque não cabia à nós.
A harmonia de nossos olhos era cúmplice de um tempo, um momento, era. Cientes num plano, num campo, numa estrada. Chegávamos a ser para ter no que nos apaixonarmos. Ficávamos.
Nos dias que se seguiam, nos perdíamos de fato. As razões e os motivos não mais interessavam. Sentíamos um mundo que se perdia e que não se justificava. Acatávamos, de maneira solidária, a pertinente ausência.
Saíamos sós e traçávamos novas liberdades. Longe um do outro sabíamos ser mais felizes. Socialmente éramos eficazes e capazes.
Até que um de nós voltava.
Os sentidos memoravam a razão original, as mãos se tocavam atraídas, um leve palpitar nos chegava à boca e uma brisa atraente nos tomava os anseios. Voltávamos a sensação de nostalgia e repetíamos os defeitos de fidelidade. Juntávamos promessas que não eram nossas e acreditávamos.
Uma velha companhia que acarreta uma nova separação. De um modo justo o mundo se repetiria e nos distanciaríamos para um sempre.
Antes que os anos nos tornem saudosistas, prefiro que você parta.

sábado, 8 de maio de 2010

A linda mulher que não (ex)tive

E ela me apareceu, desenhada num perfume que me elevava e me levava à um infinito pessoal. Seus olhos me fitavam como se eu pertencesse à última espécie humana, espécie como a de poetas gatunos ou trabalhadores esforçados. Tais olhos permaneciam como amêndoas, aguardando o linear da primavera, solitários casulos ainda verdes que esperam um último raio de sol para que, enfim, pudessem amadurecer. Seus cílios flutuavam em movimentos perspicazes, cambaleando cima-baixo como a brisa matinal, provida de além-mar.
Durante alguns segundos, o verde de seus olhos desejava lançar-se em alto-mar. Logo eu a seguiria. E assim ela mexia, fora o sentimento em contornos certos, concretos. Ela piscava, olhava e ria. Como ria!
Seus lábios assim disfarçavam, migravam vagarosamente ao pólo de seus rosto, sem enrosco, deslizava em sua superfície fina e de tonalidade outonal. Seu riso parecia perpetuar um horizonte fotográfico, de baías e Bossa Nova. Quantos suspiros almejaram-na? Quantos congelaram em sua morna fronte, em frente aos montes pecaminosos de seus lábios? E eu? Permaneço em foco.
Traços tristemente alinhados perpendicularmente aguardavam desatinamente a colisão de sentidos, a franqueza de agarrar com as mãos as estrelas da noite.
Dia-noite, eu observava lentamente o roseiral sensível de seu corpo. As cores brincavam de se espalhar, ora emudecendo pelas estações anuais de seu corpo, ora enrubescendo pela inconstância de movimentos. Girando diante de uma única alegre lágrima, que adentrava o rosado de suas maçãs, seus cabelos esvoaçavam, como se aguardassem um abraço, um retrato, ainda que fosse pitoresco.
E assim fixava-me, eternizava-me na sombra secreta de seus diários, refugos cenários de seriedade febril. E depois acordava, desejava-me bom dia, recolhia seus encantos e ia passear.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

A escolha de Matisse

Sei que talvez não deveria pedir aprovação. São minhas vontades contra a sua vontade. Devo obedecer as minhas palavras por ordem social, afinal, não chegamos aos tempos modernos. Não possuímos um padrão familiar, eu sei, mas somos o que somos e assim continuamos. Sabemos só que o nosso legado é pó e não fincamos raízes. Partimos porque podemos e vamos! Por favor não me olhe assim.

Não vou mudar, vamos mudar! Conheço suas cerimônias que foram minhas há trinta anos. Quero ir, posso, pelas cores, pelo carnaval, pelo brilho natural que se assemelha às pinturas. Relevaremos as curvas. Retificaremos o horizonte, os vários, em olhares. Seus brilhos tendem a derivar do meu e isso nada tem de mal. Devemos ir. São minhas escolhas apesar de você fazer parte. Não deveria soar dessa maneira. Por favor não me olhe assim.

Entendo seus motivos, mesmo assim não mudo meus modos. Nunca mudei e por isso desejo ir. Só para ir eu quero. Não, não há planos concretos, há a concepção fatídica de um sim, das cores internas excomugandas, as cores que crio em mim e nos outros. Também considero suas cores e entendo, entendo sim. As cores em mim e em você não tem sentido de direção, não possuem raízes, não se coordenam por bússolas, não dependem da continência do sol, da dilacerante chuva, do amarelo outono marrom... Tudo bem, não vamos! Por favor me olhe mais assim.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Frutos de um casal

Descartou por toda a vida o desconforto e amou os que sabiam se conciliar. Ao seu modo ele era assim. Assentia seus anseios como modo de se justificar.
Em sua triste infância, sofreu por querer concertar sinfonias em desconserto. Nas brigas alheias, via o orgulho a se deleitar e a vingança a se proliferar. Chorou em descanso os primeiros anos para, quando adulto, melhor se formar.
Nas vias da maturidade conheceu Tereza.
Menina, ilustre na juventude, bela e peculiar. Carregava sob os olhos as horas que passavam somente à noite devagar. Seu maior medo sempre fora não amar.
Conheceram-se quase num desenrolar. Ele havia saído mais cedo para uma visita familiar, enquanto ela se distanciava, mais uma vez, de alguma obrigação.
Na entrada do Café Royal, os olhos tranquilos e os manifestados se cruazaram num momento magistral, para ele, que abriu a porta gentilmente.
Ela se arrependeu de estar onde estava e não o notou. Por um momento ambos pensaram em chorar.
Se conheceram minutos mais tarde, quando ela saía desolada em sua pífia compreensão, ele não. Naturalmente encorajado, se delarou pela mão num elogio e no sorriso uma verdade. Se tornou solução para um coração amargurado. Ela o aprovou.
Desfrutaram de um amor gentil durante os anos em que foram felizes.
Nos anos de alegria conjugal, ele suportou seus defeitos de forma platônica. Atraiu para si a responsabilidade de tais costumes desfeitos.
Nas diversas inaptidões, aprendeu a cozinhar, a tocar um pouco de piano, a amar seus pais e a plantar legumes. Gostos de que ela não era capaz nem de tentar. Mesmo assim ela pedia, implorava e ele fazia como se fosse ela, pelo menos era o que se pretendia.
A vida por amor se seguiu.
Nos últimos anos quiseram ter filhos, a vitalidade dos argumentos era inusitada, sem quaisquer precauções tentaram. Ela sorriu por dias indefinidos e ele também.
O dom maternal não seguiu seu curso natural. Tentavam em vão e, por isso, foram consultar um médico especializado.
Por esperança, realizaram muitos exames e constatações. A incubência de buscar os resultados seguiu ao marido, e assim ele foi. Os demasiados alardes tinham sua razão. A jovem senhora não podia ter filhos, o que, certamente, traria dores à relação.
Permaneceu, por um instante, escancarado na verdade, mas logo se arrependeu.
Chegou em casa atrasado e pouco se acomodou. Tinha nas mãos um desejo divino e nas palavras outra declaração.
Decidiu por se tornar um mártir e isso, sim, ocorreu. Se seguiram lágrimas e lágrimas, dores e mais dores, sendo o culpado um único só.
Ela optou pela separação. Abandonou seu marido, que tanto soubera lhe amar, mas de maneiras infrutíferas.
Ele apenas consentiu.