Quando sabe-se menos.

A partir do momento em que a significação surge nas palavras de um texto, na exata precisão de ideia, nasce a sabedoria. A leitura, a elucidação e a compreensão provocam a emancipação da sabedoria alheia. Trata-se então da sabedoria íntima que se subtrai, uma concepção pessoal que acaba de ser preenchida por outro, uma possibilidade de vislumbre inédito que se anula, desaparece. Então, quando isso ocorre, estamos a saber menos do que o nosso egoísmo idealizou.



terça-feira, 27 de julho de 2010

Nesses anos de relacionamento

Por toda a nossa vida defendi, além de tudo, minha separação de mim. Desejei, em parcelas, a perpetuação de minha dúvida sobre a sensação de um sentimento conduzido. Te amei até a certeza de ter de partir.
Diversas vezes, planejei uma possível fuga, mas não tinha forças para te abandonar na liberdade.
Quis ser surda, quando teimava em ser seu colo desprovido de sensualidade, quando era a representação do que te havia prometido.
Quando contavas sobre uma antiga paixão, justificável na semana anterior, e eu fingia ser absolutamente crente, me entristecia pro mundo. Quando falavas sobre digníssimos olhos que nunca eram os meus, sobre a beleza das Primaveras, quando atribuías qualidades e diferentes peculiaridades honrosas a outros lábios, quando fazias de um sonho uma estrela, me sentia só. Por sempre, assim gastávamos as horas.
Nas noites em que resolvias visitar a noite, me sentia talhada por dentro, corrompida e pelos anos fui me tornando vazia, servindo de modelo para sua determinada felicidade.
Quando amanhecia, juravas querer voltar e eu ser impotente. Acreditava que não mais te buscaria, mas a tristeza carregada em seus olhos me saudava profundamente. Então, eu jurava aceitar as melhorias. Te trazia para casa e ao teu mundo. Foram muitos os finais de semana regrados a promessa e aguardente.
Na concepção de matrimônio, fui tua companhia nos dias úteis, nos dias de ressaca e de fatalidades comemorativas. Fomos casados na imagem de uma fotografia, no ritual da crença solitária e festeira. Dito isto, te isento de toda possível culpa, sendo eu a culpada por te acostumar assim.
Agora, ao te observar assim, percebo mesmo que devo ir, não quero mais suportar o fundo belo de sua alma infantil, quero esquecer tua triste figura, desolada, pedante de carinho, que transfigura vestígios de cansaço e solidão.
Peço que não abandones suas virtudes, mas não exageres. Deixei um prato no forno, provavelmente esquecerias de se alimentar.
Se cuide.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

As calçadas socialistas

Por força habitual, caminho, diariamente sobre as calçadas maltrapilhas que servem de moldura às ruas esburacadas. Meus passos seguem, diariamente, trajetórias que se equivocam a cada casa, a cada mudança brusca de fachada, novo piso, nova forma e confusas saliências. Salvo as estrelas deixadas por cães ou donos, sinto prazer de minha andança diária.
Nos dias de chuva, os passos que naturalmente seguem, se perdem na imensidão de riscos e escolhas. Logo, sentem saudade de minha terra antiga, perdida em quilômetros de memória.
Nesses dias, quando guarda-chuvas tomam o cenário urbano emprestado, a batalha exercida pelos pés é descomunal ao tamanho espacial destinado aos transeuntes. A corrida rotineira contra o tempo se apresenta com vestígios de falta de educação e tato. O mundo em sua subconcepção.
Meus sapatos, comprados de acordo com o bom gosto e não bom tempo, não se situam em dias assim. Em por, sobre, entre e através de ardósias, fileiras de jardim, cópias desonrosas de Ipanema, obras-primas trabalhadas meticulosamente para atrapalhar o sentido alheio, trajetórias projetadas para proporcionar escorregões, batidas, leves desequilíbrios e tombos vexatórios, desconsertantes, tento seguir.
No ritmo estável de crescimento de crédito, temo encontrar novos projetos de desordem ambiental e estrutural, nos poucos anos que ainda me faltam.
Na confusão de minha trajetória e espera, novamente penso nas minhas origens, de calçadas retas e retificadas em que se prolongava a mistificação de uma escolha, de um único caminho já traçado por medidas anteriores.
Visto de lá, o problema daqui não é a chuva.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Sobre os tempos meus e de minha avó

Ao entrar em casa e me deparar com mais um relógio sem bateria, parado, exigente de manutenção, sinto uma estranha sensação sobre a resolução do que poderá ocorrer. Nos últimos vinte dias, passados solitariamente devido a separação, esta é a quarta bateria de relógio a ser trocada.
Não sei ao certo quantos relógios possuo em casa e confesso que só os percebo quando de sua atividade, nenhuma. No passar do dia, não me situo em nenhum dos tempos, agora trocados. Só os mantinha ativos nas mudanças ocasionadas pelo horário de Verão.
A greve dos ponteiros, já havia resolvido apelidar a situação na troca do terceiro relógio, numa sequência curta de dias indica atraso de vida, palavras essas de minha avó.
Quando os fatos agem na figuração da fé, a consequência faz sentido.
Tendo a querer acreditar.
Devo, então, procurar os relógios inválidos que tanto me arruinam a vida. Algum relógio, há muito escondido numa gaveta, capaz de ser a razão de minhas discórdias conjugais.
Mas, há de se pensar na rebeldia de um tempo presente, um castigo pelos anos de desperdício profano, de reclamações sobre a perpétua falta, esparramado pelo sofá.
Penso no possível das probabilidades e chego ao mundo das coincidências, deixando de lado assim a fé.
Me conjugo na ciência das coincidências, campo seguro dos ocupados, afinal, superstições são conceituadas apenas nos tempos de minha avó.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

As Possibilidades

Sexta-feira. 12 de junho. Guilhermo Guirón, célebre escritor, falece em sua casa. Seu sobrinho, que o encontrara, rapidamente contou à sua mãe que então contou ao seu sobrinho, que dado o ocorrido se tornara órfão. Uma biografia já foi encomendada para pagar as depesas do funeral.

Sexta-feira. 12 de junho. Guilhermo Guirón, viúvo, morre em sua cama. Sua irmã o encontra já sem vida, o que a deixa sem ação por indeterminados minutos. Com palavras átonas de lamentação, ela explica o óbvio para seu filho e sobrinho. Ambos são confortados na ciência de um abraço.

Sexta-feira. 12 de junho. Guilhermo Guirón, pai de família, se despede da vida em silêncio no descanso do lar. Seu flho, confuso pela ideia da obrigação de estar só, se atira da janela do quarto em direção ao jardim. Percore três andares até o definitivo fim. A família, irmã-tia e sobrinho-primo, souberam de ambas as mortes e por elas lamentam.

Sexta-feira. 12 de junho. Guilhermo Gurón, solitário, é encontrado morto em sua casa. Seu filho, sua irmã e seu sobrinho talvez não saibam. Há anos não se falam ou se importam. . Até o dado momento, não há qualquer indício de quando ocorrerá o enterro. Enfim, poucos são os que lamentam.

terça-feira, 6 de julho de 2010

O pelo do peito do pé

Na primeira vez, vi-o natural: um pelo no peito, bem no meio do meu pé. Livrei-me dele do mesmo modo que o olhei. Não sei bem se, no dia, fazia sol ou chuva lá fora.
Quando da segunda aparição, ele surgiu-me num dia chato, recheado de defeitos e outros desprazeres efêmeros que se acarretam por detalhes alinhados em queda. Nesse dia, carregava uma intensa fúria que o encontrou de frente, um sentimento livre de dúvidas e que não percebe certos detalhes.
Após a profusão de trauma e karma, comecei a sentir uma leve sensação de perda, quando ainda o carregava em meus dedos, quando me deparei com a autoflagelação constante que ali deveria ter fim.
Em sua terceira presença, juro, tentei me controlar. Fiquei a observá-lo por um bom tempo e a certos amigos até o apresentei. Naqueles dias ele era meu fiel escudeiro, companheiro íntimo, ciente de minhas raízes e particularidades.
Nos meses que se seguiram, Outono e Inverno se representaram. Na chegada da Primavera, ele não mais lá estava. Deve ter morrido de morte sozinha. Não fiquei a lamentar possíveis saudades.
Em alguns momento dei por falta dele, achava estranho olhar para o peito de meu pé vazio. Imaginei ser coerente a vida de um pelo, só partir quando chegada a hora. Fúrias e travessuras o fariam resistir e retornar até que o tempo decidisse por interromper sua vida.
Passado justamente mais um tempo, num presente troiano de Deus, o pelo retornou ao seu posto de origem. Parecia descansado e abençoado por longínquas férias, disposto a lutar por um lugar ao sol.
Encarei sua artimanha como uma afronta e arranquei-o num único estalo. Tive a crueldade de esmagá-lo sem lavar as mãos.
Mais rápido que suas antecessoras vindas, ele apareceu novamente, desta vez num dia receptivo. Um dia reservado para a contemplação de esquisitices, sua aparição se enquadrava deliberadamente nos moldes pesquisados.
Passei a tarde verificando tamanho, espessura, coloração e peculariedades. Fui dormir pensando em possibilidades.
Numa vingança impossivelmente planejada, acordei sozinho e só. Sem qualquer explicação razoável ou rastro. Não tive dúvidas ao concluir que se tratava de uma fuga. Partida para o paraíso de certas ausências.
No último verão tive com ele uma breve passagem. Passava momentos em emprestada casa litorânea. Era fim de madrugada íntima quando percebi seu estado, devidamente afogado, estirado sem sopro e estatelado no peito de meu pé. Matei-o sem saber de sua vida, amornado em prazeres casuais.
Neste agora de sua aparição, vejo-o voltar pela talvez-não-última vez, numa relação nutrida de conformismo, esperança e aparência. Nas diversas vezes aparecidas ele parece ter um mesmo tamanho, possivelmente desmentido em graus que não se percebem na fé de um míope.
Sua volta, então, representa a existência de um ser único, semelhante ao próximo, um perfeito rebelde residido em mim.
Em outra perspectiva pode ele ser semelhante ao gato em sua existência. Sim, poderia ele pertencer felinamente sob a custódia da pele e assim reencarnar com as chamadas sete vidas.
Não há dúvidas, terei de arrancá-lo. Em caso de equívoco, ele certamente retornará.