Quando sabe-se menos.

A partir do momento em que a significação surge nas palavras de um texto, na exata precisão de ideia, nasce a sabedoria. A leitura, a elucidação e a compreensão provocam a emancipação da sabedoria alheia. Trata-se então da sabedoria íntima que se subtrai, uma concepção pessoal que acaba de ser preenchida por outro, uma possibilidade de vislumbre inédito que se anula, desaparece. Então, quando isso ocorre, estamos a saber menos do que o nosso egoísmo idealizou.



quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Era uma palavra

Era uma vez uma palavra, sob a própria alcunha era [palavra].
Na branca imagem do papel era soberana e impávida.
Na concepção de [única palavra] deixava de ser só.
Tinha, agora, a companhia de única, como se para ser única tivesse de ter mais de uma companhia [única palavra companhia].
Como não era mais única a palavra deixou de ser forma, se viu em duas descrições sem a forma de palavra, era agora conjunto de uma frase, com adornos, referente à palavra [palavra: única companhia].
A multiplicação de formas se fez como uma surgida explicação.
[tenho apenas a palavra como companhia, mesmo quando me despeço de todos meus vícios sonoros, tenho na significação dos símbolos a afirmação da palavra. Aquela que surge para rotular o inrotulável]
Logo se perderam de vista e se ploriferaram, uma palavra gerava outra, que logo a abandonava para gerar em si uma nova palavra. Visto da folha antiga, que fora quase branca, as diferentes palavras se ocuparam:[aocupaçãodaspalavrasfoirepentinaedesordenada.seencaixaramsemperguntarsealicabiam,seamontoaramdistantesdeseussentidosaboslutos.aúnicasensaçãovivaeradequedeixavadeserreal.começaavivercomoúnicacompanhiadesuasfragmentações,sesentircomonovaconcepçãodeforma]
Percebendo a falta de coerência, algumas palavras se rebelaram, formando um sentido que ali se explicava:
[a ação da palavra foi ordenada. sem perguntar iam,
distante dos lutos. a ação de ser real
viver como única de suas ações, ir como nova forma]
Na resolução descrita, novas palavras se formaram. Se encantaram, se modificaram. Se especializaram em diversas formações.
Palavra:
Vocábulo provido de significação.
Faculdade natural de falar.
Oração, discurso; pregação, doutrina.
Arte da palavra, a retórica, a literatura.
Dom da palavra, a eloquência.
De palavra, que cumpre o que promete: pessoa de palavra.
Só ter uma palavra, ater-se ao compromisso.
Medir (ou pesar) as palavras, tomar cuidado no que diz.
Dar palavra a, permitir (o presidente de uma assembleia) que alguém fale.
Pedir a palavra, solicitar permissão para falar, ou o direito de falar.
Direito de palavra, direito reconhecido a qualquer membro de corpo deliberativo de pedir e obter a palavra, nas condições previstas pelo regimento interno.
Buscadas as formas de sua própria concepção, elas se cansaram.
Começaram a se recolher, a partir, a se desinteressar por suas próprias descobertas. Logo a folha, onde as palavras estavam dispostas, voltava a ser branca.
A última a se despedir foi o começo de tudo, a sensação de ser [palavra].

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Autorretrato

Há mais de 60 dias que não lhe digo bom dia ou boa noite, confesso que isto faz falta aos meus dias. Passo os dias distante, esperendo sua benção para uma vida surgida, em vão. Para os que tentam meu silêncio mudar peço desculpas, mas o improvável merece a condição de impossível nos caminhos que aparecem.
Em minha conquistas recentes respeito a euforia alheia. Me calo ao perceber que não há para quem dedicar meus feitos, os efeitos destacam apenas minha solidão estampada. São das aprovações que me envergonho. São das provações que tento me esquivar.
Sem a necessidade de palavras brandas, busquei, por toda a vida, sua aprovação imediatada. Remediava meus atos na esperança que percebesse minhas benfeitorias, notasse meus reparos, tirasse pra si um bom exemplo. Tarde demais ou, para nós, nunca.
Minhas atitudes servem agora pra moldar meu autorretrato, sem suas vias complexas de comparação que tanto alimentaram meus sonhos e conquistas. Vago só na condição de existir, não serei o que esperam por não ter de quem esperar.
Mereço o destino retorcido por me achar, antigamente, capaz de ser sozinho, ser íntimo de meus atos, ser coerente aos meus pensamentos. Me calo por entender que o hoje é ainda, que o amanhã pode ser apenas o exemplo de um tempo que nunca chega. Mereço o castigo do tempo para não me perpetuar em fixos ideiais, mereço o fim que não chega até que eu me acostume ao sentido de tudo isso.
Viverei o que será de meus dias sem a competência destinada aos sanguíneos, aos familiares que partem sem dizer adeus, bom dia, boa noite.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Minhas borboletas íntimas

Ainda deve ser de manhã quando acordo, pelo silêncio que se esqueceu na memória ouço o trabalho pueril da cidade. Ainda tenho sono.
Na sensação de começo que se inicia, perco a motivação de seguir, de continuar sugerindo a prova de que não sou capaz. Por dizer, estou cansado.
Fecho os olhos sentindo a verticalização de meu horizonte, a incapacidade aumentada no plano do infinito. Rapidamente as palavras percebidas em minha mente começam a voar aos céus de um horizonte prático. Começo a perdê-las de vista e ploriferá-las. Numa concepção calada, elas mudam e praticam cores, incorretamente variam para não serem identificadas. Somem enquanto novas surgem. Palavras em cores tanto.
Respiro profundo requerindo aconchego. Sugiro um redor cadenciado, referência de meu tempo, na espera de eu ser um simbolista. Não sou atendido.
Resolvo por mim acalmá-las, ser o produtor de seus desejos íntimos, carregar em meu pensamento a decorrência de serem. Elas simplesmente partem, partidas em metade até serem quase esgotadas. Sinto o remorso em mim, elas somem para um possível sempre e a culpa se ocupa de mim.
Abro os olhos no som amargo dos corredores. Respiro o sopro de um lugar fechado. Não há palavras nem menção de atraso. Aparentemente tudo corre bem.
Volto a fechar os olhos numa esperança que me doma, me persegue, me arranca de meu lugar infeliz. Tenho os meus pés como soltos e começo a flutuar, minhas rotas de significação se sobrepõem às de orientação. Sou padrão de minha imaginação capaz.
Chego perto das palavras que foram minhas, que partiram e me desassossegaram, que agora voltam a ser palavras do absoluto, voltam a ser reunidas. As cores tendem a construir uma paisagem, a vontade de ser parte faz de todos um retrato belo e mágico. Leve sensação de reconstituir a felicidade.
Vou em busca delas, quero tomá-las por necessidade, carregar nos meus planos o que entendi de concreto e completo. Quero convidá-las ao conforto do papel, ao destino coerente das belas imagens percebidas em outro plano.
Não consigo. As palavras dobram e redobram ao redor de mim, estico o táctil e não as alcanço. São meus possíveis reflexos, minhas borboletas íntimas. São elas que se sugerem, não podem, por natureza dos efeitos, serem sugeridas.
De volta ao quarto num presente que não deve ser mais de manhã, permaneço em profundo silêncio, indiferente aos diagnósticos especializados.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Criação

No primeiro dia
fez-me os olhos,
apresentou
a beleza silenciosa
de uma paisagem
intacta.
Consolidou-me
ao fascínio
de vivas cores,
de formas e percepção.
Fez-me
espectador
do colorido semblante
da obra divina.

No segundo dia
fez-me os ouvidos,
realizou
sinfonias naturais
para puro
deleite
de meu novo atributo.
Mostrou-me
as conversas dos animais,
seus diálogos atenuantes
e singelos.
Musicou-me
na lamentação breve
do correr dos rios.
Apresentou-me
prazeres ruidosos
e o inevitável
silêncio.

No terceiro dia
fez-me o nariz
e a necessária sensação
de respirar.
Presenteou-me
com flores
tão felizes e doces
que tive a obrigação majestosa
de nomeá-las.
Espalhou por entre
detalhes
uma essência selvagem,
mistura peculiar
de todos os perfumes exibicionistas.

No quarto dia
fez-me a boca
recheada de surpreendentes
sabores.
Ofereceu-me
saliva
e frutos diversos,
tratou-me com graça
na recusa de sabores
amargos.
Na particularidade
de certos gostos,
prolongou-se
em meus lábios,
um doce sentir de paixão
inegável e inesgotável.
Beijou-me
até a certeza de
um novo dia.

No quinto dia
fez-me os braços,
mãos,
vergonhas e pernas.
Mostrou-me
a capacidade do próximo
sem o próximo,
ensinou-me a tocar,
até então,
o inexistente.
Transformou
a figura
em mim.
Apesar
do infinito palpável
que se alinhava lá fora,
preferi o gozo
da autodescoberta.

No sexto dia
fez-me em sentimento:
coração.
Desejou-me
calores internos
e suores noturnos.
Apresentou-me,
um a um,
futuros prazeres
e consignadas culpas.
Fez-me
uma solidão carregada
de sentimentalismo
e exagero.
Definiu-me saudade,
mesmo
sem a presença do outro.

No sétimo dia
fez-me
a alma
e nada disse.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

As Carpideiras

Nos anos de minha vida fui pouco e mal conhecido. Dos infortunados pela minha companhia todos partiram, poucos querendo ficar. Nos caminmhos que se formaram sinônimos, todos tinham a certeza de ir, partir e assim sobrei-me numa solidão intacta.
No tempo que não passava tanto, meu comportamento se consolidou numa rudeza tão desprezível que não despertava o interesse nem de inimigos. Foi então que soube que o ódio possui uma dose necessária de simpatia.
Sozinho, sem o mínimo de consideração alheia, fiz fortuna e questão de perdê-la. Num fim sem meios não se há de ter herança, herdeiros ou hereditariedade. Deixei em planos um caixão e um pedaço de terra. Minha tragetória sugeria o silêncio de meu epitáfio, na presença vazia do inevitável.
Quando do desfecho, faltaram flores, velas, lágrimas e saudade. Talvez seja esse o intuíto de um desfecho, ser encerramento e não exaltação. A chegada de um herói que não se acusa, que se cala e que aguarda.
Um só de mim que nunca deixou de ser pó.
Porém, no caminho que se seguia, ouvi de longe a defesa de meus anos, um pedido melancólico que clamava pela abertura das divinas passagens. Eram as benditas carpideiras salientando a tristeza dos passos, passados.