Quando sabe-se menos.

A partir do momento em que a significação surge nas palavras de um texto, na exata precisão de ideia, nasce a sabedoria. A leitura, a elucidação e a compreensão provocam a emancipação da sabedoria alheia. Trata-se então da sabedoria íntima que se subtrai, uma concepção pessoal que acaba de ser preenchida por outro, uma possibilidade de vislumbre inédito que se anula, desaparece. Então, quando isso ocorre, estamos a saber menos do que o nosso egoísmo idealizou.



terça-feira, 19 de outubro de 2010

Flores de Inverno

Na estação chegada à janela, as flores retornam ao lar, retomam a figura bela de ser ser ao ar livre. No jardim que se destaca ao térreo do andar, novas vidas desabrocham, respiram num ar fundo, profundo, pousado e pausado.
Natural beleza colada às faces rubras, brancas e rasas.
Antes de o sol prevalecer, os pássaros já comentam os doces sentidos em forma de canção. Nos horários adiantados de outra estação, eles começam a labuta de evocar antes do acontecer.
Nas imagens que se formam, fotografadas nos piscares de olhar, a Primavera se reabilita num instante, se revela como feito anual e impecável. Passado as estações de queda, branquidão e exagero, a bela dama se renova, retoma seu lugar de musa floral.
Como continuam belas as flores de meu jardim!
Engano meu.
As flores não continuam. As flores não prevalecem (a não ser na memória dos livros e poemas). As flores vivem seu excepicionam e falecem.
Perpetuadas são somente as flores de Inverno, aquelas que partiram contigo e partiram. Flores carregadas de recados e saudade.
Flores feitas, partidas, perpétuas e magoadas.
São as flores que te acompanharam em lágrimas e me deixaram só nesta manhã primaveril.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Fatos

Por anos que não te vejo mais assim, tão logo em minha frente. Pode parecer estranho, apesar de tantos anos, perceber que não te olho da maneira como antes. Maldito o tempo que permaneceu cruel tanto para mim como para ti.
Miro meu olhar ao teu, olho assim por modos e sem jeito. São tuas pálpebras já cansadas de olhar um olhar que não permanece, mesmo.
Teu sorriso, sempre afável, é o único a me permitir, talvez. Ele sim continua...
Lembra-te das vezes que partimos em busca de verdades meticulosamente verdadeiras?
Pois bem, não era eu. Pois bem, nunca nos encontramos.
Depois de anos desmedidos sem tua presença, me esperavas em teu presente. Vangloriavas o mundo sob a fonte de saudades inexplicáveis e de cunho vernáculo suspeito. Soubestes viver assim enquanto eu, por mim, vivi bem sem ti.
Decidistes ficar?
Não responda, de fato não importa. Qualquer tentativa tua soaria como um presságio daquela vida que passou, rapidamente. Um sentido que deixastes ao me deixar para trás.
Como podes querer voltar e ao meu lado envelhever?
Tinha em meu querer a fonte de tua juventude, pura e divinamente intocável. Distante e aprazível somente aos meus olhos. Depois de perdoar teu caso, teu acaso já não me importava. Na época, já sinalizava para tais circunstâncias.
Tuas novas atitudes, deixamos pra depois. Não quero mais perder o tempo, valioso tempo, um tempo que se molda a partir de nossas atitudes e desenganos.
Devo ir. As obrigações me chamam e condenam. Quero apenas escovar os dentes e depois seguir.
É provável que mais tarde eu não te veja. É provável que nem amanhã.
É provável que eu não queira. Mais.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

O menino de papel

No sertão de um país sem igual, Canson vivia sossegadamente com sua família, amigos e conhecidos mais. Moravam num lugar onde todos os cidadãos eram de papel, e por isso o nome: Vila dos Papéis. Estrategicamente localizado no interior da seca, longe das terríveis chuvas que assolavam o país.
[sertão, céu azul]
Sobre as chuvas e tempestades, Canson sabia apenas do que vinha de fora. Sabia dos horrores de São Paulo, terra da garoa e dos perigos do Rio de Janeiro, da Baía de Guanabara.
[cidade, céu cinza (nublado)]
Na Vila dos Papéis o tempo seguia em paz. Num absoluto céu azul, todos, sem exceção, viviam em harmonia e felicidade. Os mais velhos pregavam a união com respeito recíproco de seus semelhantes. Os mais novos gostavam de andar sempre juntos.
[bonequinhos à moda Criança Esperança, mocinhos e velinhos]
Por vezes, quando tinham de sair para uma cidade vizinha, por algum motivo ou outro, Dona Cartolina, mãe de Canson, repetia sempre os mesmos atos. Beijava o retrato de seu falecido marido, que serviu a nação como A4 na Guerra de Canudos, e ia estender rapidamente seus vestidos mais bonitos no varal.
[um retrato na cabeceira e um vestido no cabide]
Respeitando uma lenda vestuária antiga, do tempo do Império do Sol, o estender dos vestidos no varal era um pedido aos céus e à falta de chuva. Um eterno desejar de tempo seco capaz de preservar seus lindos e preciosos vestidos.
Toda vez que voltava pra casa, D. Cartolina via nos vestidos secos a realização de suas vontades.
[um grande sol e um varal que percorre o quintal, o vestido em destaque]
Na vila, na seca, na morada nada de chuvas ou trovoadas. Mas para Canson nem tudo era calmaria e tranquilidade. Pelas últimas notícias parecia ter um futuro bem nublado. Sentiu, no peito, uma tristeza amarga e cinza.
[Canson, no peito um coração cinza]
Sua amargura era pela partida de sua amada, de sua bela namorada, sua dama perfumada. Seu amor que então partia. Por vontade da família dela, Canson e Crepon iriam se separar.
[a namorada de Canson, Crepon]
O pai dela, autoritário e mandão, queria que Crepon fosse estudar nas grandes cidades. Queria que ela fosse morar com um tio plastificado que sempre mantia contacto.
Para ele, Crepon deveria ser mulher de Letras. No fundo, no fundo, ele fazia o melhor em seu papel de pai.
[letras com diferentes formas, sobrepostas, com diferentes cores e papéis]
Quanto mais perto da partida de Crepon, mais notícias chegavam, vinham feito tatuagens nos corpos das belas cartas. As mais exibidas e viajadas possuíam até selos marcantes de suas passagens pelo mundo.
[inúmeras cartas de diversos tipos e tamanhos, com selos de lugares diferentes, preferencialmente lugares secos]
No dia da partida, Canson e Crepon se emocionaram muito. No abraço apertado que deram, deixaram escorrer solitárias lágrimas que se cravaram no ombro direito de cada um.
[imagem deles se abraçando, no ombro dela (único visível) a marca da lágrima {metade de um coração}]
Na noite que seguiu o dia, Canson não conseguia dormir. Sentiu uma imensa vontade de chorar, mas não podia. Queria, mas tinha medo de se desmanchar em suas próprias lágrimas. Passou as horas pensando na felicidade simples que parecia distante.
[menino na cama, janela aberta, estrelas na noite]
Nem bem amanheceu, ele tomou uma decisão. Saiu à rua com o único objetivo de trazer sua amada de volta. Partiu com pressa, sem dar explicações ou dizer adeus.
[quarto vazio, as coisas do menino deixadas para trás]
Com o sumiço do filho, Dona cartolina se desesperou. Com o pequeno post-it bebê no colo, foi logo avisar as autoridades.
Guarda Napo imediatamente se prontificou, para ajudar a família saiu em busca de Canson.
[D. Cartolina com post-it no colo e Guarda Napo ao lado]
Depois de muito caminhar, o guarda Napo finalmente encontrou o jovem fujão. Numa estrada deserta, viu Canson abraçada com seu único e verdadeiro amor.
Mesmo de longe conseguia ver sorrisos recíprocos de um amor sem igual.
[um caminho e o casal apaixonado]
No abraço dos dois, um sinal de que nunca deveriam ter sido separados. Novas lágrimas, desta vez de felicidade, se perderam e se desprenderam dos enamorados olhos. Escorreram devagar, uma lágrima de cada, percorrendo um caminho traçado anteriormente.
[metade do “coração” se completa, surge a tatuagem de coração no ombro de Canson e Crepon]
Nos corpos uma marca, enfim, completa. Nas lágrimas que juntas desenharam um coração, as emoções da partida e da chegada. No encontro reencontrado, a certeza de uma estrada rumo à felicidade.
[a figura do casal no caminho, o sol abençoando o casal, efeito angelical]

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Sentir não mais

Agora, ao despertar dos galos, ele não mais acorda despertando em si um bom dia. Não faz questão de preparar o café, equilibrando sentidos e sabores. Não sai pela manhã respirando novas brisas de conforto e naturalidade.
Não passeia pelas passagens pouco urbanizadas, pelo que chamamos de rua ao invés de caminho. Não olha nos olhos dos outros para não ver refletida sua própria imagem artificial. Não mais faz questão do bom senso ou juízo, das injúrias imperfeitas blasfemadas por outrém. Não mais se cansa nem retoma imperfeitas declarações.
Não pensa no correto a se seguir, não se lembra de como ou em que sentido seguir. Não mais se sente humilhado pelas promessas fáceis e piedosas. Não se estica em longos olhos para saber das novidades.
Não sente o perfume roubado de uma rosa nem o leve vislumbre de um dia ensolarado.
Não percebe a permanência de um beijo nem a falta que faz um abraço. Não deseja voltar para casa nem continuar na rua. Não consegue medir a capacidade de se estar.
Está assim sentindo desde o dia em que você partiu.