Quando sabe-se menos.

A partir do momento em que a significação surge nas palavras de um texto, na exata precisão de ideia, nasce a sabedoria. A leitura, a elucidação e a compreensão provocam a emancipação da sabedoria alheia. Trata-se então da sabedoria íntima que se subtrai, uma concepção pessoal que acaba de ser preenchida por outro, uma possibilidade de vislumbre inédito que se anula, desaparece. Então, quando isso ocorre, estamos a saber menos do que o nosso egoísmo idealizou.



segunda-feira, 28 de junho de 2010

Quero um Deus

Quero um Deus que me seja permanente e palpável
de lábios carnudos e olhar displicente
que me toque as mãos e os pés simultaneamente.
Quero um Deus saboroso
um Deus fruto de meu atingível
um Deus propagado na atmosfera íntima de dois corpos
que me afague em todos os seus braços, pernas, cabeças e sentidos.
Quero um Deus presente em toda sua virtude e piedade
um Deus beijo-abraço-divino-apertado
que me penetre e que de todo me alcance
um Deus que assim seja.

Quero um Deus por assim dizer
que me ouça e que me escute
um Deus que acompanhe minha rotina por divertimento conceitual
que me arranque, por enquanto, desse lugar comum
que me socorra sem que ocorra alarde
Quero um Deus de singularidade plural.
um Deus interrompido por minhas contradições
que se me situe que o faça logo.
Quero um Deus que me doa o necessário.

Um Deus que aja e que haja
um Deus completo em sua amplitude sem vias malsujas de propaganda e ressurreição
Quero um Deus de graça.
Um Deus purificado para assim me ser
um Deus verdadeiro ou à mim corrupto
quero um Deus sem impostos
que respeite minha solidão.
Quero um Deus de acordo
um Deus Senhor do Tempo para do presente destoar.
Quero um Deus que tudo saiba e nada digue.

terça-feira, 8 de junho de 2010

Da janela

Na mesma hora de ontem e dos dias que se seguiram invertidos, Joaquim se debruça confortavelmente na janela para novamente poder ver o jogo de bola que acontece na rua.
Nem se fez a digestão do almoço, os meninos se dividem em dois times, riscando linhas nos paralelepípedos que se estendem e se extendem até o esconder do sol. Os uniformes se alinham em com e sem camisas. Nem mesmo a previsão da semana é capaz de desorganizar as regras das vestimentas.
Joaquim, do alto de seu camarote, aguarda anciosamente o começo do jogo. Se sabe que o menor dos jogadores é o mais habilidoso e que os dois maiores são mais valentes que eficentes. Os outros se variam na formação dos times.
As marcas desgastadas das guias são ruínas de outra geração. O suor de pais, tios e conhecidos perpetuados no decorrer de décadas.
Sentindo certa ausência, Joaquim olha para o retrato gravatal de seu pai. Na foto não há qualquer sinal de que um dia, em sua trajetória, tivesse o que chamam de infância.
A algazarra começa antes que as perguntas lhe brotassem despertas. Na rua um assovio que indica o gritar de uma mãe sobre a lição que não fora aprendida, uma nova medição do gol adversário, um leve deslanchar de tijolo, meio passo, e um princípio de confusão. Todos olham a bola e o jogo começa.
Joaquim se imagina num desenrolar de alegria despojada. O menor dos futebolistas demonstra, concorre, abusa de sua superioridade. Na janela, orgulho e simpatia admirada.
No lado de dentro do apartamento a mãe tem um coração partido, fica a olhar o menino que agitado se assemelha ao pai. Se emociona e se vangloria por qualquer partida. Sofre sozinho ao gosto das derrotas.
Mais um pouco. O jogo acaba e o sorriso de Joaquim também.
Nostálgico, tenta se contentar com a partida do sol.
Inesperadamente um pássaro azul pousa no plano chumbo do parapeito. Observa e se deixa observar de dentro, por entre o vidro levemente embaçado.
Num gesto particular, como se pudesse lhe oferecer companhia através de um mimo, a mão pede ao filho que deixe o passarinho entrar. O menino não acha boa ideia, diz que se sente melhor observando, gesto propriamente materno e sanguíneo.
Calado e um pouco cansado, ele se retira da frente da janela, se afasta para amanhã, após o almoço, retornar.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

A falta

As sete e quarenta da manhã o despertador soava pela terceira vez sem que houvesse qualquer animação da parte do subordinado.
Antes de começar, estava atrasado. Levantou apressado.
Pelas contas de ontem, trabalhou cinquenta e quatro horas semanais nos últimos dois meses. Antes de pensar em argumentar, estava cansado. Se fazia de exemplo na tortuosa rotina do mundo moderno, acumulação de tarefas ao invés de proveito do tempo.
Lavou o rosto como se houvesse meio de disfarçar as lágrimas. Se esquivou da falta de brilho do espelho para que seu reflexo não confrontasse suas preocupações. Envelhecera por demais nos últimos dias.
Sem reconhecer a manhã que o imitava lá fora, pensou em se recolher, discretamente. Depois de pouco pensar, permitiu-se.
Voltou ao conforto do travesseiro. Deleitou-se nas boas manhãs que são feitas para dormir e reconfortar os sonhos humanos. Fechou os olhos num instante para melhor permanecer no vazio, sem culpa. Decerto não iria se honrar pelo árduo trabalho diário.
Pensou nas ocorrências. Deveria arrumar uma desculpa.
Divagou, ainda de olhos fechados, sobre os que dele dependiam. Mesmo assim adormeceu.
Acordou por volta de horas e horas mais tarde. Revigorado e renovado. Irresistivelmente perdoado.
Tomou um merecido desjejum. Se alongou, se espreguiçou e sorriu. Escolheu um livro na estante e um tempo no sofá. Deixou pra mais tarde a elaboração do motivo da falta, da ausência.
Já no meio da tarde cogitou diversas possibilidades: Algum tipo de alergia, nada que pudesse ser percebido futuramente. Um acidente doméstico, um subterfúgio familiar, uma inexplicável perda de sentidos, amnésia...
Resolveu implantar uma ideia mais conservadora e urbana.
Pegou o telefone.
Com voz lastimável, disse ao chefe que sofrera um acidente, nada grave, de carro, no banco do carona, estava sem cinto, batida leve, sem qualquer estrondo ou peculiaridade. Dissera que, porém, como batera a cabeça no vidro, seu amigo achou melhor levá-lo ao hospital, apenas por precaução. O amigo ficara preocupado com a localização da batida, a cabeça. Não, não houvera maiores danos, mas fora impossível avisar.
Seu chefe compreendeu.
Ficou o resto do dia a declarar vitória. Um dia livre no meio do turbilhão profissional derradeiro. Descansou e sorriu como nunca fizera antes.
No fim do dia, se preparou para dormir. Antes de deitar, desceu à cozinha para um último copo d'água.
Na volta, na cozinha, no corredor e na escada, silêncio e escuridão. Ao subir, perdeu o quinto degrau, pisou em falso e ralou a testa no corrimão em caracol. Em suas palavras signos e impropérios de mau humor.
Quando se olhou no espelho, se viu machucado. Tinha na testa a marca dos acidentes mencionados, no coração a certeza da dor. Acreditou se tratar de um castigo justo e inevitável, a justiça ele admirou.
Dormiu remediado.
No dia seguinte acordou com o vigor do dia anterior, com semelhante disposição e cenário. Relembrou a véspera. Diante do espelho pensou em suas ações e se enumerou na justiça merecida.
Saiu para trabalhar.
Sozinho, dirigiu por dois quarteirões até se chocar com outro carro, no cruzamento. Sentiu-se desolado.
Dessa vez, achou a vingança infantil, mas preferiu o silêncio às blasfêmias.