Quando sabe-se menos.

A partir do momento em que a significação surge nas palavras de um texto, na exata precisão de ideia, nasce a sabedoria. A leitura, a elucidação e a compreensão provocam a emancipação da sabedoria alheia. Trata-se então da sabedoria íntima que se subtrai, uma concepção pessoal que acaba de ser preenchida por outro, uma possibilidade de vislumbre inédito que se anula, desaparece. Então, quando isso ocorre, estamos a saber menos do que o nosso egoísmo idealizou.



quinta-feira, 24 de março de 2011

As ocorrências vitais de V.

Naturalmente V. existia, vivia por ser sua única opção. Nos primeiros minutos da manhã V. apenas observava, despertava antes do amanhecer por estar farto de sonhos incompletos.
No primeiro gole do dia, uma xícara de café preto, sem adição de açúcar para assim acostumar seus lábios ao sabor amargo de rotina.
Antes de caminhar para um provável regresso, fumava seu único cigarro do dia. V. não mais gostava de fumar, mas não aceitava seu gosto pelo vício.
Solitário, aceitava sua condição vagarosamente, saberia de sua valia ao final da vida.
Saía descalço por entre as ruas de terra batida, seguia por entre falsos passos num desejo íntimo de partir. V. sabia que esta terra, herdada por seus pais, representava o sossego, o destino que o indicava permanecia.
Antes de voltar para o almoço na cantina em frente à sua casa, degustava boas doses de aguardente, sentia no íntimo o alívio de possíveis pesares.
Almoçava sob os olhos da labuta alheia. Há muito na cidade fofocavam sobre as ocupações de V., que de fato eram nenhuma.
Logo após o almoço ia correndo ao ribeirão, deleitava-se sobre a sombra morna de uma jabuticabeira.
Nos dias de chuva, V. é o primeiro a se dirigir a um abrigo, sente nas mãos gélidas o descarrego em fúria das águas, sente calafrios que o percorrem por inteiro.
No regresso para casa caminhava como se não houvesse amanhã, ontem e hoje. Andava devagar, no meio da rua principal, distribuindo sorrisos tímidos de quem tem muito a esconder.
Enquanto a cidade se preparava para a missa das cinco, V. buscava sua salvação no consultório de seu único amigo.
Quando este lhe diz que V. está terminantemente doente, abre um sorriso demasiadamente surpreendente.
V. sabe que com esse diagnóstico não há motivo para se preocupar com a vida.
Ele agradece e sozinho espera.

Um comentário: