Quando sabe-se menos.

A partir do momento em que a significação surge nas palavras de um texto, na exata precisão de ideia, nasce a sabedoria. A leitura, a elucidação e a compreensão provocam a emancipação da sabedoria alheia. Trata-se então da sabedoria íntima que se subtrai, uma concepção pessoal que acaba de ser preenchida por outro, uma possibilidade de vislumbre inédito que se anula, desaparece. Então, quando isso ocorre, estamos a saber menos do que o nosso egoísmo idealizou.



quarta-feira, 2 de junho de 2010

A falta

As sete e quarenta da manhã o despertador soava pela terceira vez sem que houvesse qualquer animação da parte do subordinado.
Antes de começar, estava atrasado. Levantou apressado.
Pelas contas de ontem, trabalhou cinquenta e quatro horas semanais nos últimos dois meses. Antes de pensar em argumentar, estava cansado. Se fazia de exemplo na tortuosa rotina do mundo moderno, acumulação de tarefas ao invés de proveito do tempo.
Lavou o rosto como se houvesse meio de disfarçar as lágrimas. Se esquivou da falta de brilho do espelho para que seu reflexo não confrontasse suas preocupações. Envelhecera por demais nos últimos dias.
Sem reconhecer a manhã que o imitava lá fora, pensou em se recolher, discretamente. Depois de pouco pensar, permitiu-se.
Voltou ao conforto do travesseiro. Deleitou-se nas boas manhãs que são feitas para dormir e reconfortar os sonhos humanos. Fechou os olhos num instante para melhor permanecer no vazio, sem culpa. Decerto não iria se honrar pelo árduo trabalho diário.
Pensou nas ocorrências. Deveria arrumar uma desculpa.
Divagou, ainda de olhos fechados, sobre os que dele dependiam. Mesmo assim adormeceu.
Acordou por volta de horas e horas mais tarde. Revigorado e renovado. Irresistivelmente perdoado.
Tomou um merecido desjejum. Se alongou, se espreguiçou e sorriu. Escolheu um livro na estante e um tempo no sofá. Deixou pra mais tarde a elaboração do motivo da falta, da ausência.
Já no meio da tarde cogitou diversas possibilidades: Algum tipo de alergia, nada que pudesse ser percebido futuramente. Um acidente doméstico, um subterfúgio familiar, uma inexplicável perda de sentidos, amnésia...
Resolveu implantar uma ideia mais conservadora e urbana.
Pegou o telefone.
Com voz lastimável, disse ao chefe que sofrera um acidente, nada grave, de carro, no banco do carona, estava sem cinto, batida leve, sem qualquer estrondo ou peculiaridade. Dissera que, porém, como batera a cabeça no vidro, seu amigo achou melhor levá-lo ao hospital, apenas por precaução. O amigo ficara preocupado com a localização da batida, a cabeça. Não, não houvera maiores danos, mas fora impossível avisar.
Seu chefe compreendeu.
Ficou o resto do dia a declarar vitória. Um dia livre no meio do turbilhão profissional derradeiro. Descansou e sorriu como nunca fizera antes.
No fim do dia, se preparou para dormir. Antes de deitar, desceu à cozinha para um último copo d'água.
Na volta, na cozinha, no corredor e na escada, silêncio e escuridão. Ao subir, perdeu o quinto degrau, pisou em falso e ralou a testa no corrimão em caracol. Em suas palavras signos e impropérios de mau humor.
Quando se olhou no espelho, se viu machucado. Tinha na testa a marca dos acidentes mencionados, no coração a certeza da dor. Acreditou se tratar de um castigo justo e inevitável, a justiça ele admirou.
Dormiu remediado.
No dia seguinte acordou com o vigor do dia anterior, com semelhante disposição e cenário. Relembrou a véspera. Diante do espelho pensou em suas ações e se enumerou na justiça merecida.
Saiu para trabalhar.
Sozinho, dirigiu por dois quarteirões até se chocar com outro carro, no cruzamento. Sentiu-se desolado.
Dessa vez, achou a vingança infantil, mas preferiu o silêncio às blasfêmias.

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