Quando sabe-se menos.

A partir do momento em que a significação surge nas palavras de um texto, na exata precisão de ideia, nasce a sabedoria. A leitura, a elucidação e a compreensão provocam a emancipação da sabedoria alheia. Trata-se então da sabedoria íntima que se subtrai, uma concepção pessoal que acaba de ser preenchida por outro, uma possibilidade de vislumbre inédito que se anula, desaparece. Então, quando isso ocorre, estamos a saber menos do que o nosso egoísmo idealizou.



quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Criação

No primeiro dia
fez-me os olhos,
apresentou
a beleza silenciosa
de uma paisagem
intacta.
Consolidou-me
ao fascínio
de vivas cores,
de formas e percepção.
Fez-me
espectador
do colorido semblante
da obra divina.

No segundo dia
fez-me os ouvidos,
realizou
sinfonias naturais
para puro
deleite
de meu novo atributo.
Mostrou-me
as conversas dos animais,
seus diálogos atenuantes
e singelos.
Musicou-me
na lamentação breve
do correr dos rios.
Apresentou-me
prazeres ruidosos
e o inevitável
silêncio.

No terceiro dia
fez-me o nariz
e a necessária sensação
de respirar.
Presenteou-me
com flores
tão felizes e doces
que tive a obrigação majestosa
de nomeá-las.
Espalhou por entre
detalhes
uma essência selvagem,
mistura peculiar
de todos os perfumes exibicionistas.

No quarto dia
fez-me a boca
recheada de surpreendentes
sabores.
Ofereceu-me
saliva
e frutos diversos,
tratou-me com graça
na recusa de sabores
amargos.
Na particularidade
de certos gostos,
prolongou-se
em meus lábios,
um doce sentir de paixão
inegável e inesgotável.
Beijou-me
até a certeza de
um novo dia.

No quinto dia
fez-me os braços,
mãos,
vergonhas e pernas.
Mostrou-me
a capacidade do próximo
sem o próximo,
ensinou-me a tocar,
até então,
o inexistente.
Transformou
a figura
em mim.
Apesar
do infinito palpável
que se alinhava lá fora,
preferi o gozo
da autodescoberta.

No sexto dia
fez-me em sentimento:
coração.
Desejou-me
calores internos
e suores noturnos.
Apresentou-me,
um a um,
futuros prazeres
e consignadas culpas.
Fez-me
uma solidão carregada
de sentimentalismo
e exagero.
Definiu-me saudade,
mesmo
sem a presença do outro.

No sétimo dia
fez-me
a alma
e nada disse.

5 comentários:

  1. Quando vi você ali me seguindo no Twitter mal podia imaginar que escrevesse coisas tão lindas. Como me surpreendo nesse mundo virtual. Gostei MUITO, muito mesmo!

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  2. Sensacional o teu blogue, admiro muito este tipo de criatividade! Do fósforo à Criação, tens palavras hábeis. Alma de cronista. Abraços!

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  3. Agradeço imensamente os elogios, esses são capazes de transformar um dia, uma semana, um sentimento.

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  4. FANTÁSTICO! FABULOSO! Fiquei sem palavras...e até fiquei sem respirar por momentos!
    Um beijo.

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  5. Perfeito!!! Cada detalhe, cada palavra...
    Tenho orgulho de conhecer você!!!

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