Quando sabe-se menos.

A partir do momento em que a significação surge nas palavras de um texto, na exata precisão de ideia, nasce a sabedoria. A leitura, a elucidação e a compreensão provocam a emancipação da sabedoria alheia. Trata-se então da sabedoria íntima que se subtrai, uma concepção pessoal que acaba de ser preenchida por outro, uma possibilidade de vislumbre inédito que se anula, desaparece. Então, quando isso ocorre, estamos a saber menos do que o nosso egoísmo idealizou.



terça-feira, 6 de julho de 2010

O pelo do peito do pé

Na primeira vez, vi-o natural: um pelo no peito, bem no meio do meu pé. Livrei-me dele do mesmo modo que o olhei. Não sei bem se, no dia, fazia sol ou chuva lá fora.
Quando da segunda aparição, ele surgiu-me num dia chato, recheado de defeitos e outros desprazeres efêmeros que se acarretam por detalhes alinhados em queda. Nesse dia, carregava uma intensa fúria que o encontrou de frente, um sentimento livre de dúvidas e que não percebe certos detalhes.
Após a profusão de trauma e karma, comecei a sentir uma leve sensação de perda, quando ainda o carregava em meus dedos, quando me deparei com a autoflagelação constante que ali deveria ter fim.
Em sua terceira presença, juro, tentei me controlar. Fiquei a observá-lo por um bom tempo e a certos amigos até o apresentei. Naqueles dias ele era meu fiel escudeiro, companheiro íntimo, ciente de minhas raízes e particularidades.
Nos meses que se seguiram, Outono e Inverno se representaram. Na chegada da Primavera, ele não mais lá estava. Deve ter morrido de morte sozinha. Não fiquei a lamentar possíveis saudades.
Em alguns momento dei por falta dele, achava estranho olhar para o peito de meu pé vazio. Imaginei ser coerente a vida de um pelo, só partir quando chegada a hora. Fúrias e travessuras o fariam resistir e retornar até que o tempo decidisse por interromper sua vida.
Passado justamente mais um tempo, num presente troiano de Deus, o pelo retornou ao seu posto de origem. Parecia descansado e abençoado por longínquas férias, disposto a lutar por um lugar ao sol.
Encarei sua artimanha como uma afronta e arranquei-o num único estalo. Tive a crueldade de esmagá-lo sem lavar as mãos.
Mais rápido que suas antecessoras vindas, ele apareceu novamente, desta vez num dia receptivo. Um dia reservado para a contemplação de esquisitices, sua aparição se enquadrava deliberadamente nos moldes pesquisados.
Passei a tarde verificando tamanho, espessura, coloração e peculariedades. Fui dormir pensando em possibilidades.
Numa vingança impossivelmente planejada, acordei sozinho e só. Sem qualquer explicação razoável ou rastro. Não tive dúvidas ao concluir que se tratava de uma fuga. Partida para o paraíso de certas ausências.
No último verão tive com ele uma breve passagem. Passava momentos em emprestada casa litorânea. Era fim de madrugada íntima quando percebi seu estado, devidamente afogado, estirado sem sopro e estatelado no peito de meu pé. Matei-o sem saber de sua vida, amornado em prazeres casuais.
Neste agora de sua aparição, vejo-o voltar pela talvez-não-última vez, numa relação nutrida de conformismo, esperança e aparência. Nas diversas vezes aparecidas ele parece ter um mesmo tamanho, possivelmente desmentido em graus que não se percebem na fé de um míope.
Sua volta, então, representa a existência de um ser único, semelhante ao próximo, um perfeito rebelde residido em mim.
Em outra perspectiva pode ele ser semelhante ao gato em sua existência. Sim, poderia ele pertencer felinamente sob a custódia da pele e assim reencarnar com as chamadas sete vidas.
Não há dúvidas, terei de arrancá-lo. Em caso de equívoco, ele certamente retornará.

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