Quando sabe-se menos.

A partir do momento em que a significação surge nas palavras de um texto, na exata precisão de ideia, nasce a sabedoria. A leitura, a elucidação e a compreensão provocam a emancipação da sabedoria alheia. Trata-se então da sabedoria íntima que se subtrai, uma concepção pessoal que acaba de ser preenchida por outro, uma possibilidade de vislumbre inédito que se anula, desaparece. Então, quando isso ocorre, estamos a saber menos do que o nosso egoísmo idealizou.



sexta-feira, 28 de maio de 2010

Um sonho

Amor. Não sabe o que me aconteceu. Você está dormindo? Foi um sonho bem ruim!
Sonhei que, numa manhã parecida com amanhã, você acordava antes de mim, antes que o sol pudesse entrar pelas frestas da janela, antes que outros homens pensassem em esboçar algum bocejo.
Você levantava sem fazer ruído, me olhava do alto da cama, desmembrando a passividade de meus cuidados e obrigações. Saía na ponta de um pé, depois o outro, até chegar ao banheiro, acendia a luz e logo fechava a porta para não atrapalhar meu descanso. Lavava o rosto com as duas mãos em concha e detectava detalhes facilmente perceptíveis ao reflexo do espelho. Suspirava fundo, duas vezes para não haver dúvidas, colocava pouca pasta de dente na escova, que um dia já foi minha, e tentava esquecer detalhes recém descobertos. Abria a porta do banheiro, com mais cuidado do que havia fechado, e saía do quarto com destino a mais um dia na vida.
Já na cozinha preparava seu desjejum, tomava meio copo d’água e escolhia algo saudável na fruteira ao seu lado. Encostava na pia e refletia sobre os fortuítos cotidianos, sobre o futuro de um ano e sobre a certeza de seus sonhos. Abria a segunda gaveta à sua esquerda e tateava seu conteúdo em busca de uma faca, sabia exatamente o lugar de todos os utencílios domésticos, visualizava a colocação perfeita dos objetos da casa, do espremedor de laranjas ao ralador de queijo. Descascava, sem melhores compromissos, uma maçã verde, cortava-a em oito pedaços e guardava para mim a metade.
Colocava em fervura a água para o café e ia à dispensa em busca de pães para fazer torradas. Abria a geladeira e encontrava geléia e manteiga para o acompanhamento das torradas e de algum biscoito encontrado na dispensa por acaso.
Inebriada pelo cheiro de seu café eu acordava, anciosa para encontrar meu digníssimo amado. Lhe oferecia um carinhoso bom dia e um beijo na ponta de seus lábios. Perguntava o motivo de não ser acordada, só para ouvir você falar que não era preciso me incomodar e que o casamento representava a união de prazeres e deveres.
Logo após o café você voltava ao quarto, se vestia de forma impecável, quase cafona aos olhos dos invejosos, e perguntava, sem olhar diretamente pra mim, como estava. Voltava ao espelho e se ajeitava por alguns segundos a mais. Saía de casa distraído, sem as chaves e se esquecendo de me dizer até mais tarde, minha linda, meu anjo, meu amor.
Nas ruas, olhava os outros para entender porque tanto te olhavam. Adimirava qualquer menção à sua pessoa e se deleitava num sorriso costumeiro e amável aos que estavam instalados nas calçadas. As saias, que transitavam no piso urbano, serviam de paisagem, floridas e ensolaradas enfeitavam seu trajeto até o ponto de ônibus. Contava dez carros que passavam até a chegada do veículo público, suas coincidências sempre foram mais relevantes que sua pontualidade.
Ficava no corredor, em pé, à espera de algum sinal que lhe fizesse tomar partido, que lhe fizesse sentar próximo a uma jovem de olhos castanhos ou uma mulher confiante, semelhante ao seu semblante, mas não ao seu perfil. Enfim decidido trocava olhares com a simpática moça que chegava a se envengonhar com sua timidez praticada. Por um ou dois quilômetros se tornavam íntimos, calados e serenos como a maioria dos casais.
Descia próximo ao seu trabalho com a certeza de que este seria mais um dia para se viver e saborear, respirava a brisa que enobrecia a manhã e caminhava, desejando bom dia e bom-dia.
Trabalhava.
Perto da hora do almoço não suspirava ao ouvir os sons cançados de seus colegas nem se comovia aos trejeitos dos injuriados. Olhava para o seu relógio em contagem regressiva, do tempo.
Deparava-se com seu prato e sentia um pesado gosto de rotina na boca. Certamente não se deliciaria com meu belo picadinho, não se vangloriaria de ter em mãos um banquete dos deuses, não convidaria seus amigos de turno para o almoço de domingo, preparado com carinho por sua amada esposa. Você não faria isso. Silenciosamente iria mastigar 23 vezes cada garfada de seu laborioso almoço.
Voltaria a trabalhar, não sem antes fumar seu Gauloises escondido.
Ao fim do dia, você permanecia por mais quinze minutos (breve sensação de dever cumprido, comprido e diário). Voltava para casa rodeado por saias que não brilhavam com tanto vigor, afinal as mulheres de hoje também se sentem cansadas. Se ocupam em pensar em seus deveres, pensar em contas que seriam problemas e que os problemas seriam as contas.
Chegava em casa, sorria para mim com o que sobrou da simplicidade plástica e me beijava ao pé da orelha. Sentava no sofá, se afastava do mundo lá fora e ficava só de meias e chinelos. Dessa vez você esqueceria de cheirar minha nuca e dizer que fico linda de avental.
Jantava num silêncio provocador, observava as manchas de umidade que se aculuvam na parte esquerda da parede, e logo se retirava da mesa de jantar. Esta noite você não dançaria comigo na sala ao som de Carlos Gardel, nem tentaria me convencer de que noites como esta e todas as outras noites deveriam ser celebradas ou caluniadas, dependendo da situação de algum amigo, colega ou camarada.
Sozinho, você se dirigia prematuramente ao quarto, apagava a luz de uma vez, deixando para mim os vestígios de um único abajur.
Eu, então, choarava ao pé da cama enquanto você certamente não me ouvia, se preparava sozinho ao dia seguinte e ao seguinte e ao seguinte.
Em menos tempo que o habitual eu lhe abandonava.
Amor. Você está dormindo? Que bom!

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