Quando sabe-se menos.

A partir do momento em que a significação surge nas palavras de um texto, na exata precisão de ideia, nasce a sabedoria. A leitura, a elucidação e a compreensão provocam a emancipação da sabedoria alheia. Trata-se então da sabedoria íntima que se subtrai, uma concepção pessoal que acaba de ser preenchida por outro, uma possibilidade de vislumbre inédito que se anula, desaparece. Então, quando isso ocorre, estamos a saber menos do que o nosso egoísmo idealizou.



quinta-feira, 13 de maio de 2010

Uma tarde para Yann Tiersen

Os primeiros pingos começam a cair, são lágrimas meticulosamente desenhadas que falecem furtivamente sobre as possiblidades de um plano. Uns sobre os outros deslizando em seus trajetos. Unidos, trasparecem a limpeza da alma até o subsolo.
Os transeuntes miram o céu, como se estivessem surpresos, como se fosse a primeira vez que gotas d'água os banhassem. Alguns permanecem, outros se esquivam e se apressam para o lado de lá. Poucos são os desavisados na multidão.
Os guarda-chuvas tomam suas posições e começam a florir. Um belo xadrez se abre e se contradiz em meio à atmosfera cinza que percorre a paisagem. Em seguida surge um vermelho maior, fazendo inveja à uma grafite sombrinha, desbotada e chata. Outro, listrado em vermelho e branco, ultrapassa muitos no corredores anônimo da esquina.
As águas discorrem fervorosamente em meio a pluralidade de acessórios pluviais que se espalham.
Duas botas amarelas afundam no ambiente, perto da guia despejam vida para todos os lados. Da janela é possível ver a dança pertinente dos calçados. Na plateia duas margaridas brincam suavemente no jardim, desejando a seiva feita para alimentar.
Vindo de longe uma bicicleta corta o trânsito, dois similares apaixonados se esbanjam e fazem roda em festança juvenil. São só crianças num parque de diversões. Olham para cima, para trás, para o mundo, se olham e seguem um destino a povoar.
Sob o coberto, um alguém de meia-idade profere blasfêmias insensíveis contra o tempo, uma senhora, por azar ao lado, concorda com as anedotas do rapaz, uma outra descorre, uma outra sorri e outra mais por lá também. Todas seguem sem intervir.
Um tom, de um azul bem clarinho, se desmancha ao ver as gotas que lhe caem. Solta um sorriso ainda travesso e puxa o vestido florido na altura de seu olhar. O vestido, encharcado, não demonstra a devida atenção.
Na quitanda em frente, os frutos são observados com satisfeita atenção. Sabe-se que o morango está na época, que a maça é argentina e que as alcachofras tem coração. O alho-poró é tratado com admiração por unhas cada uma de uma cor.
Do outro lado da rua um pneu, cansado e careca, clama por sua aposentadoria. Num súbito de dor e fadiga, se esfacela em seu túmulo, improvisado e molhado ao pé de um poste de luz. Não há tempo para lamentações, um outro modelo, mais novo e preciso, tomará seu lugar.
Na janela, agora, pouco se vê dos lá de fora. Rastros úmidos se formam na vertical, a vista embaçada traz um breve sentimento de angústia. Os olhos correm para ver o que há atrás da porta, na rua. Sentir de perto as cores, os cheiros, os toques e os sentidos, antes do sol voltar e se aconchegar.
Por acaso minha mãe não deixa.
Ainda chove.

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