Quando sabe-se menos.

A partir do momento em que a significação surge nas palavras de um texto, na exata precisão de ideia, nasce a sabedoria. A leitura, a elucidação e a compreensão provocam a emancipação da sabedoria alheia. Trata-se então da sabedoria íntima que se subtrai, uma concepção pessoal que acaba de ser preenchida por outro, uma possibilidade de vislumbre inédito que se anula, desaparece. Então, quando isso ocorre, estamos a saber menos do que o nosso egoísmo idealizou.



sexta-feira, 23 de abril de 2010

Com destino a São Miguel

De volta à estação, começo a recordar o que seria um esboço de um tempo que acabara de passar. Detalhadamente, busco na fresca memória as certezas que ocorreram. Percorro instantes de nosso quase reencontro.
Nossa manhã se contemplaria da seguinte maneira:
Sentaríamos nos bancos à nossa direita, eu primeiro, para que não houvesse menores suspeitas, e você logo em seguida. Nos olharíamos por alguns instantes e ficaríamos a perceber a jovem brisa que adentrava da janela.
Durante quinze minutos, permaneceríamos a contemplar o silêncio que corria, deixaríamos que o tempo regredisse, que se situasse num passado dúbio e particular. Descobriríamos novas fragilidades e desencantos, como se a timidez fizesse parte de nossos trejeitos.
Sem que você notasse, meus dedos tocariam as costas de sua mão, percorreriam palpitamente os caminhos de seus dedos, bailariam na ponta de suas unhas e voltariam ao céu. Passivamente, se instalariam entre os seus dedos e se entrelaçariam na figura de uma paisagem. Retornariam, após um breve espasmo, às costas de sua mão e ali se aconchegariam.
Olhando fixamente os detalhes de nossa jornada, esperaria uma sugestão sincera sua: um filme, um livro, uma música, algo que lembrasse nossa figuração, algo que pudéssemos levar por um segundo à memória.
Faria com que meus dedos lhe fragilizassem suavemente, se declinassem num ritmo linear e casual. Logo estaria a ter a palma de sua mão na ponta de meu dedo anelar. Olharia de frente seus olhos, crente de encontrar-me num suspiro, e voltaria a concentrar-me no centro de suas emoções.
Desenharia círculos, triângulos, corações, formas abastratas e obedientes, na certeza de tocar o epicentro de nossos corpos. Você recolherias seus dedos fugidios, estremeceria à desconfiança alheia e, num respiro íntimo, baixaria os encantos de seus olhos.
Assim, teria você mais perto, poderia lhe observar entre os fios que cobriam sua seus cílios, suas orelhas, me ouviria ser um pouco mais honesto.
De volta aos dedos que se atraíam, traçaria delicadamente o percurso de seu braço, fabricaria desenhos para estampar de vez sua tez. Subiria pelos caminhos que ali surgiriam, inebriado pelo perfume inocente que penetrava, cautelosamente, o pesar de sua respiração.
Me olharia pelos cantos, restaurada e sensível, tentando compreender o que havia se passado, se a fantasia instaurada era real ou fruto de seus desejos, por ora contemplados. Travaria batalhas sobre a concepção de meu perfil, seguiria seus instintos e buscaria de todas as formas meu olhar. Coincidentemente, meus olhos estariam fechados, calados, ludibriando breves rotinas de um amor iniciado.
Você, habilmente, calaria seus gestos, deixaria que a figuração lhe tomasse a alma, supreendendo-se com os excessos do acaso. Depois, ainda com olhos fechados, sussurraria em seu ouvido frases desconexas do ocorrido na situação anterior. Falaria dos carnavais que logo passaram, das primeiras primaveras, de embaraços e desencontros.
Então, poria meus olhos em seus ombros, saciando meus lábios num ponto cru de seu corpo, um recorte de sua pele, embaraçada em vestimentas adequadas à estação. Contemplaria nossa união permanecendo em vestígios.
Bruscamente, fugiria ao enconto de meu banco, olharia para a paisagem que corria lá fora, reparando por um vidro quase límpido, e apontaria em direção ao céu, provocando o tempo sobre a possibilidade de chuva. Falaria sobre os encantos das águas, os deslizes proporcionais e proporcionados, os detalhes que transbordam pureza de um sentido, seja qual for o momento.
Você notaria meus olhos emudecidos e tentaria, em vão, consolar-me, proteger minha conduta, esquecendo-se que a nostagia faz parte de minha vontade, como uma prece que se realizara enfim. Ainda entrelaçadas, nossas mãos se estranhariam, se incomodariam com o excesso de umidade e, facilmente, se distanciariam.
Levantaríamos lentamente de nossos bancos, você primeiro para que houvesse convicção e eu logo a seguir. Caminharíamos à porta do vagão. Aguardaríamos em pé nosso último momento juntos, sem testemunhas ou cumplicidade.
Sairíamos do trem como dois desconhecidos, duas faces homogênias de uma estação só, você rumo ao norte e eu de volta à cidade.
Partiríamos de volta às nossas vidas, dois pontos distantes de uma linha condenada a se perpetuar. Recordaríamos a manhã que se encerrava e que permanecia absoluta.
Mas, mesmo assim, você não apareceu.
Creio que deve ter sido a chuva.

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