Quando sabe-se menos.

A partir do momento em que a significação surge nas palavras de um texto, na exata precisão de ideia, nasce a sabedoria. A leitura, a elucidação e a compreensão provocam a emancipação da sabedoria alheia. Trata-se então da sabedoria íntima que se subtrai, uma concepção pessoal que acaba de ser preenchida por outro, uma possibilidade de vislumbre inédito que se anula, desaparece. Então, quando isso ocorre, estamos a saber menos do que o nosso egoísmo idealizou.



quinta-feira, 29 de abril de 2010

O caso do ponto de ônibus

Eram sete e meia da noite, a lua reinava soberana e úmida sobre o ponto principal da Rua da Alvorada.
Todos, naquela noite, pareciam depender merecidamente do transporte público. Apressados, convencidos e ouvintes aguardavam igualmente o retorno aos seu lares (casas, bares e tortas luminárias rubras).
Aproximei-me da multidão, de maneira tímida, aconchegando-me no primeiro espaço vazio, quadrado inóspito, entre crianças lambuzadas de uma sorte feliz e um homem gravatal de sorriso e bolsos insuficientes.
Meus olhos, assustados, buscaram um lugar pacífico, prontamente recíproco à minha solidão. Rodearam, rodearam e permaneceram, fincados ao despero de minhas pernas, em meio à oratória de Babel que ali se instaurara, sob, sobre e junto a mim.
Neste instante saí de mim, meu olhos finalmente localizaram o cintilar da aurora. Localizei-me prontamente ali, afastado dos múrmurios e lamúrias, em frente ao poste, paraíso concebido aos visionários.
Passado alguns segundos, meu corpo, que resolvera obedecer os planos de meus pensamentos, se despede dos transeuntes, lhes deixando a sombra, lhes deixando o gosto que sobrara de ontem, o gosto de sempre.
Fiquei. Inebriado em meu mundo de sons calados e espera. Feliz. Numa esfera singular, numa sensatez hipócrita e altamente confidencial, talhada pela imagem crua de uma mulher.
Ela se instalou assim, sem pedir-me licença e não se importando com a imagem utópica e selvagem que eu havia criado. Em minha frente, olhou-me de soslaio, erguendo seu sorriso até a ponta de meu nariz. Brincava de ser menina, bailarina, tatuagem de meu simples desejo.
De repente o sereno pousou lentamente em seu corpo. Atrevidamente, suas maçãs se avermelharam, mergulhadas no gosto lento dos perfumes vindos do céu. Fechou os olhos, sonhou seus pecados mais incolores, e deixou que a mais fina camada de água permanecesse no mais profundo de seus desejos.
Então, o menor dos pingos tocou-lhe os lábios, caminhou no implacável de sua boca. Uma fonte rara de ciúmes tomou-me por inteiro, nunca havia pensado com tamanha fúria sobre o mais cafajeste dos fenômenos naturais.
Minha decência se desmantelou, despedaçou-se em minha própria imaginação. Senti o ardido brilho dos faróis e semáforos noturnos, novamente voltei a perceber o sereno sobre o caso dos outros.
Como se reparasse minha dispersão, ela abriu-me um sorriso íntimo, ergueu dois dedos que secaram , cuidadosamente, seu lábio inferior, superior, inferior, superior. As luzes voltaram a se apagar, entramos em cena como um par, éramos duo, um corpo que aguardava a chegada do outro. Éramos desejos recíprocos misturados ao sabor insípido do destino.
Aproximei-me dela, minha respiração ditava um ritmo inadequado, um leve espasmo a rodeara surgindo de mim. Seus olhos fitaram-me, dominaram minhas dilatações, pulsando, tinha meu coração ardendo na boca e em seus lábios, vibrando.
No momento de tocá-la a face, discorrer de suas emoções, de sentir suas palpitações dominantes, um gigante em minha frente surgiu. As pessoas correram, gritaram, formando a desordenada fila. A pressa e a exatidão se amontoaram, uma orbitando a outra.
Sozinho, caminhei ao final da espera, o ônibus me aguardava junto a outros tantos. Com distinção, olhei em direção a ela, lhe deixando o gosto aprazível de hoje, de nunca.

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