Quando sabe-se menos.

A partir do momento em que a significação surge nas palavras de um texto, na exata precisão de ideia, nasce a sabedoria. A leitura, a elucidação e a compreensão provocam a emancipação da sabedoria alheia. Trata-se então da sabedoria íntima que se subtrai, uma concepção pessoal que acaba de ser preenchida por outro, uma possibilidade de vislumbre inédito que se anula, desaparece. Então, quando isso ocorre, estamos a saber menos do que o nosso egoísmo idealizou.



quarta-feira, 21 de abril de 2010

Um sorriso, um presente e um adeus

Ele vivia a vida tranquilamente, de maneira simpática. Possuía amigos, um lar afetuoso e humor refinado. Dedicava-se à todas as tarefas pessoais de ótimo grado.
Pela cidade, era saudado por todos, causando simpatia por onde caminhava. em poucos anos, se tornara sorridente por opção do povo. Assim funcionava a democracia pessoal que perdoa a inveja, como perdoa a soberba.
Numa madrugada de terça-feira, porém, ocorreu-lhe algo inédito em seus anos de simpatia. Caminhando de um lado para outro até se decidir por ir à cozinha, buscava entender os sintomas de insônia que tanto lhe atormentavam. Percepções banais aos meros mortais.
Ele parou em frente a geladeira, estátua estável e perplexa. Com as mãos em vias de alcançar seu interior, deparou-se com sua imagem refletida no eletrodoméstico. Ostentou, como se aquela imagem lhe pudesse trazer os anos, as vontades e seus planos.
Os pensamentos se perderam num vaguear sincero até pousar na utilidade de toda uma vida. Reparou na funcionalidade da vida como um todo e seu fim.
Com olhos de sensibilidade, voltou seus movimentos à pia e decidiu por um copo de água natural, para que o gosto do tempo não se peredesse em outro sabor.
De volta ao quarto suspirou no silêncio que pairava, na respiração de sua esposa, no afago das almofadas espalhadas pelo chão. Para não atrapalhar o cenário disposto retirou-se devagar.
Já na sala, começou a memorar seus feitos e efeitos. Percorreu fatos de sua trajetória que não provocaram um sorriso sequer, verificou a alegria alheia, sem conseguir expressar tal artifício de modo natural.
Entristeceu-se.
Caminhou devagar até a estante e abriu com ironia um de seus segredos, voltando a fumar para praticar seu puro egoísmo. Ficou e só recolheu as cinzas quando o dia amanheceu.
Os dias seguiram normalmente, apesar de uma indelicada vontade de ficar sozinho. Uma vontade ainda comportada em momentos adequados. Nada perceptível ao cunho popular.
Duas semanas, vagarosamente, passaram e chegaram ao dia do aniversário de seu primo.
Amigos desde o sempre, obtiam cumplicidade nos dias de festa. Nessas dastas, ele sempre se apresentava com exuberante elegância e humor cerebral. Dessa vez preferiu camiseta branca e vinho tinto. Com estranho sorriso, entregou o presente ao aniversariante e se retirou.
Não alegou desculpas porque não fora indagado.
As comemorações surgiam enfáticas e gordas. Bodas, batizados, casamentos e debutantes. Todos se embriagando em gostos populares. Sua presença era tão almejada quanto infeliz. Com vestimentas e opções alcoólicas comuns, repetia o primeiro ritual de abandono. Em silêncio, um sorriso, um presente e um adeus.
Apesar das muitas preocupações da esposa, continuou firme em sua conduta. Sua escolha egoísta tendia ao sucesso. Os dias sucediam cada vez mais sóbrios. Sua solidão dava-lhe uma feição mais comedida, mais transparente, mais enjoada. Longe dos sorriso não tinha afeição.
Inesperadamente, as visitas se tornaram mais frequentes. Eram tardes recheadas de palavras jogadas ao vento, fabricadas para cativar, obedecer ou sensibilizar. As paisagens começavam a perder a cor nas paredes de seu exílio natural.
Certa vez, quando um velho amigo apareceu, sem sequer avisá-lo, foi econômico. Por entre as barras do portão que lhe cortavam o sorriso, entregou um de seus livros favoritos embrulhado em palavras de despedida. Mesmo aceitando o presente, o velho amigo nunca o perdoou.
Por interesses mútuos, outros amigos começaram a lhe fazer visitas. A cada visita um destino. Às vezes silêncio, mas sempre um sorriso, um presente e um adeus.
Atitudes mais drásticas deveriam, então, ser tomadas.
Num domingo de chuva intensa, convocou uma reunião em sua casa. Dos que sobraram, vieram amigos, colegas, familiares e interessados, se acomodando em todos os cantos da enorme sala.
Com passos fatigados, declarou que doaria todos os seus pertences, não ousava viver na capacidade material. Enquanto os outros retiravam profunfos desejos da casa, repetiu minuciosamente os movimentos da primeira elucidação. Suspirou no silêncio que pairava, e para não atrapalhar o cenário disposto retirou-se devagar.
Em pé, em frente à casa, permanceu durante horas até que o vazio preenchesse todos os caminhos. No meio não havia nada além dos corpos dele e de sua esposa.
Com lágrimas prendidas em seus olhos, ela o indagou sobre o propósito daquilo tudo.
Sem emitir nada mais que um silêncio, entregou-lhe as chaves da casa, o anel de noivado e um beijo insuficiente.
Ofereceu aos céus seu corpo como presente à solidão. Deu dois passos e padeceu.
Um sorriso percorreu o meio-fio.

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